“A sociedade do cansaço” é o nome de um ensaio do filósofo sul-coreano Byung-Chul Han sobre uma enfermidade que está acometendo a sociedade. Segundo os conceitos de Han, o cansaço é uma resposta do corpo para o excesso de positividade e cobrança que a sociedade impõe. Han reflete, em sua obra, sobre a violência da positividade, que é mais uma das articulações da sociedade do cansaço para produzir pessoas mecanizadas e centradas no que é essencial para um sistema capitalista: a busca pelo lucro. A cobrança pelo desempenho atinge as inseguranças dos indivíduos ao tentar trazer propósitos exagerados para o sucesso no trabalho.
Letícia Chagas, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Santa Maria (UFSM), foi uma das responsáveis por ministrar uma palestra no início de 2022, organizada pela Coordenadoria de Ações Educacionais (CAED) da UFSM, com o título “Sociedade do cansaço: crise e esgotamento”. De acordo com a psicóloga, as pessoas estão condicionadas à busca pelo sucesso, seja qual for o custo. Para ela, vivemos em uma sociedade que faz crer que impor limites é um retrocesso e que as pessoas são capazes de alcançar tudo e que, para isso, só basta esforço.
Letícia ainda explica que é natural que uma sociedade que pensa em produzir, comparar e vencer o tempo todo tenha sintomas do cansaço escancarados entre seus indivíduos. As consequências dessa nova dinâmica são percebidas no íntimo das pessoas envolvidas. Confira mais das ideias da psicóloga sobre os desdobramentos desse fenômeno psicossocial na entrevista que ela concedeu para a Arco:
Arco: Com a eclosão da Covid-19, houve a migração da realidade de estudos, trabalho e relações para o mundo virtual. Como você avalia essa imersão no mundo digital causada pela pandemia da Covid-19?
Letícia: Por mais que a internet tenha possibilitado que as pessoas seguissem suas atividades e interagissem umas com as outras, essa imersão profunda no mundo digital gerou consequências irreversíveis para a sociedade. Estar o tempo todo conectado com o mundo digital provocou um cansaço excessivo e, com isso, uma série de distúrbios de saúde, como sedentarismo, miopia, transtorno de desvio de atenção, depressão, dismorfia corporal e ansiedade.
Além disso, esse contato constante com as redes sociais promove cada vez mais a “sociedade do igual” que tenta se homogeneizar, seja pela comparação nas mídias seja pela tentativa (bem sucedida) capitalista de vender sempre os mesmos produtos.
Arco: Pensando no conceito de “Sociedade de Desempenho” de Han, quais efeitos psicológicos são gerados pela cobrança por uma produtividade constante, mesmo em tempos caóticos?
Letícia: A “Sociedade de Desempenho” conceitua um meio social que cobra constantemente por produtividade e resultado dos seus indivíduos. Além disso, as pessoas se colocam em uma posição de autoexploração, permeada de medo, pressão e angústia.
A autoexploração é um fenômeno que ocorre em decorrência do hiperconsumo, que é uma busca incessante por multiplicar bens e nunca se satisfazer com aquilo que se adquire.
Arco: É possível delimitar fronteiras quando o ambiente de trabalho migra para casa? Como fazê-lo?
Letícia: Quando o ambiente de produção se funde com o ambiente de lazer, não há pausas ou limites e o indivíduo fica condicionado a produzir mais do que deveria. Algumas dicas para evitar essa fusão são: a delimitação de espaços, a definição de horários e o autoconhecimento.
Arco: O sonho da liberdade e da capacidade de fazer tudo é um estímulo psicológico ou consiste em uma estratégia capitalista para impulsionar o desempenho no trabalho?
Letícia: A capacidade de fazer tudo é algo que pode, muitas vezes, tornar-se frustrante. A pessoa que tem consciência que é capaz de tudo e exige de si mesma o desempenho em uma série de tarefas acaba enraizando uma cobrança que a priva de lazer e descanso, atividades fundamentais para a saúde física e mental.
Essa autocobrança pode gerar consequências psicológicas graves e está severamente atrelada com o fundamento de uma sociedade capitalista. Na expressão “tempo é dinheiro”, observamos de forma clara essa exigência por produção e desempenho como condição para a existência de cidadão em uma sociedade que gira em torno do trabalho.
Arco: O que é o “burnout”?
Letícia: O “burnout” é uma palavra da língua inglesa que pode ser traduzida como “esgotamento”. O burnout ocorre como uma resposta do corpo para as multitarefas – ato de realizar múltiplas atividades ao mesmo tempo – que causa desgaste físico e psíquico.
Esses desgastes ocorrem com a enorme perda de energia do cérebro para romper conexões neuronais no revezamento constante de atividades. Para que o cérebro direcione o foco em uma tarefa, uma ligação é feita, e no momento em que a atenção é desviada por uma notificação do celular, por exemplo, essa conexão precisa ser quebrada e posteriormente, ser refeita.
Todo esse processo usa uma quantidade muito grande de energia e pode acarretar na perda de informações importantes entre uma conexão e outra. O burnout vem então, como um alerta, quase como se fosse o corpo dizendo “pare e descanse”.
Arco: E quais estratégias podem ser utilizadas para evitá-lo?
Letícia: Para que o corpo não precise atingir o estado de alerta, é essencial estabelecer horários de descanso, não exceder horas de trabalho, praticar atividade física, delimitar tempo de lazer e, acima de tudo, ser gentil consigo mesmo.
Arco: Você poderia citar sintomas psicológicos característicos da sociedade do cansaço?
Letícia: A sociedade do cansaço apresenta distúrbios que têm alguns sintomas fáceis de serem identificados: o cansaço excessivo, a ansiedade, as informações fragmentadas, a violência neuronal – excesso de positividade e produção que geram reações de rejeição no corpo-, os problemas de comunicação, a depressão e o burnout.
Arco: Quais consequências vemos em uma sociedade cansada?
Letícia: Uma sociedade cansada está constantemente mais propensa a adoecer e acometer -se a sintomas gerais do cansaço e do esgotamento mental.
Arco: A sociedade do cansaço está relacionada somente com o contexto digital?
Letícia: A sociedade do cansaço já existia antes da era digital, quando os sintomas já eram diagnosticados por conta do pensamento capitalista. Apesar disso, o contexto digital potencializou de forma exponencial a sociedade do cansaço e as multitarefas.
Arco: Tem como não se sentir uma pessoa ‘cansada’ em uma sociedade que está cansada?
Letícia: Não se sentir uma pessoa cansada em meio a uma sociedade cansada é praticamente impossível. Acontece que os sintomas desse distúrbio refletem em todos os indivíduos e a cobrança por produtividade e sucesso é quase geral.
fonte: Revista ARCO – Jornalismo Científico e Cultural / UFSM
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