Sobre o ódio nas redes sociais

Por Rudá Ricci, cientista político

A violência verbal e a tentativa de cancelamento diário que vigoram nas redes sociais sugerem um certo adoecimento e extrema insegurança que se espraia neste século XXI. Não é algo normal. Mas, é algo frequente.
Chega a ser assustador como alguns poucos – felizmente não se tornou a regra – ingressam numa live ou comentam uma postagem com o nítido intuito de ofender e ameaçar (no caso, de cancelamento). Ameaçam, mas nada fazem além de vociferar.
A intenção é uma declarada desqualificação do outro que, muitas vezes, desconhece. Não se trata de crítica, mas de um jorro de humilhação para gerar desconforto e exclusão desse oponente imaginário. Para quem se expõe em lives e eventos virtuais, o clima tóxico é uma busca comum vinda de quem perdeu totalmente o autocontrole.
Jon Ronson já havia feito uma extensa lista de ataques virtuais em seu livro “Humilhado: como a Era da internet mudou o julgamento público”. Os casos relatados, mesmo que os acusados tivessem culpa ou não, revelam uma política de terra arrasada. Francisco Bosco escreveu um livro que vai na mesma direção. O título do livro, muito provocativo, “A vítima tem sempre razão?”, gerou incômodo, mas não muita polêmica. São inúmeros casos, como o de Mallu Magalhães que publicou um clipe onde negros dançam besuntados de óleo. O vídeo sofreu críticas sobre uma possível estética racista. Mallu reagiu e agradeceu quem a alertou, embora não tivesse sido a intenção na produção do vídeo. E não é que esta postagem tão singela gerou milhares de respostas? Nem todas ofensivas, mas ocorreram. Na prática, o que restaria à Mallu além do que fez?


Tento compreender o que motiva alguém permanecer num evento virtual e atacar o tempo todo em chats. Fico com a impressão que é gente que fica à espreita para se autoafirmar ou autopromover a partir da desmoralização de quem está se expondo. Tentarei uma ou outra explicação a respeito.
Imagino que seja uma espécie de idolatria invertida. Uma dependência emocional com o objeto de sua fúria para poder se afirmar. Richard Sennett fala em “substituição idealizada”, ou seja, o medo de ficar solto, de não ter um ponto de referência. Então, o impulso é se vincular à uma figura externa para poder transformá-lo em saco de pancadas. A questão é que não adianta uma única surra. A ânsia de autoafirmação e de dependência emocional ao objeto do ataque leva o agressor a continuar a agir agressivamente. Mais e mais e mais sem esgotar a pulsão – de morte? – que o impele ao ato contínuo.
Sartre trabalhava a angústia advinda da liberdade: a responsabilidade de ser livre. A linguagem da rejeição é, assim, uma antecipação ao medo da sua própria responsabilidade na vida. O foco no cancelamento tem o condão de sugerir uma força de quem cancela que, na prática, é pífia. São mais atos simbólicos. Eu ataco para não me ver na minha responsabilidade pelo mundo ser como é. Eu ataco para dizer que sou correto, tão correto que atuo como RoboCop virtual diuturnamente, rondando as redes para fazer justiça com as próprias teclas.
Uso o termo cancelamento não como ato em si, mas como subjetividade. É comum o ataque nos chats (ou mesmo aqui no Twitter) não ter fim, sem que o agressor resolva abandonar a arena de ataque. Configura uma necessidade de agredir para se promover ou se afirmar.
Baumann analisou como a partir do final do século passado passamos a ter uma dupla personalidade: a física (off line) e a virtual (online). A virtual, muitas vezes, é uma construção imaginária, normalmente protegida por um avatar. Uma espécie de heterônimos de Fernando Pessoa. Ora, com tais possibilidades ao dispor do freguês, a agressão sem travas é facilitada ao extremo. Um convite ao fim do autocontrole. Chegamos ao Reino da Pulsão. Em outras palavras, o fim da educação e da convivência social civilizada.
Nesse sentido, essa agressividade compulsiva que aparece nas redes sociais revela solidão e necessidade de autoafirmação.
Para que ficar num ambiente ouvindo alguém que lhe incomoda? Para projetar sua intenção que não é ouvida no seu cotidiano. Como chegamos a esse ponto?

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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