Tramita no Senado um Projeto de Resolução que pode levar o país a anos de recessão. O relator, senador José Serra (PSDB-SP), propõe uma redução na dívida pública que pode prolongar a crise econômica por vários anos. O projeto implica enorme redução na capacidade do poder executivo de ajudar a economia a voltar crescer, de fazer investimentos e de continuar os programas para a redução das desigualdades sociais. É imperativo que tenhamos uma ampla discussão e participação do Executivo para uma mudança desse porte. Várias personalidades lançaram um abaixo-assinado com um manifesto: Contra o golpe fiscal na democracia brasileira.
Por César Locatelli, especial para os Jornalistas Livres
“Como não conseguimos chegar ao poder pelo voto popular, temos de reduzir o poder da presidência.” Esse parece ser o mote de certos personagens de nossa cena política que, de modo similar aos vilões de contos de aventura, passam o tempo a entabular modos “heterodoxos” de vencer. No formato mais espalhafatoso estão tentativas de incriminar e impedir a presidenta; no formato mais dissimulado estão mudanças nas leis para manietá-la. O senador paulista José Serra relata um Projeto de Resolução do Senado que pode ser classificado nesse segundo caso e que, se aprovado, limitará fortemente a ação dos presidentes da República, atual e próximos.
O atual Projeto de Resolução do Senado começou em 2000, quando o presidente Fernando Henrique Cardoso encaminhou ao Senado uma proposta para se estabelecer limites para a dívida consolidada da União, Estados e Municípios. A parte relativa à União não foi apreciada e, portanto, foi arquivada. No início desse ano, o senador paulista solicitou o desarquivamento do projeto e tornou-se seu relator na Comissão de Assuntos Econômicos. Trata-se do Projeto de Resolução do Senado de número 84/2007.
Antes de continuar, precisamos entender três conceitos técnicos usados na contas públicas.
1. Ao longo do tempo, quando o governo brasileiro não conseguia arrecadar o suficiente para pagar despesas e investimentos, ele tomava dinheiro emprestado dos bancos, das pessoas e das empresas. Se somarmos tudo o que o governo devia, em agosto de 2015, chegamos a R$ 3,8 trilhões. Esse valor é chamado de dívida consolidada da União. É um valor alto, mas vejamos que tudo que o Brasil produz em um ano, que é o PIB, está próximo de R$ 5,7 trilhões. Então, a dívida consolidada da União está perto de 66% do PIB. Há países que têm dívidas muito maiores. Todos os desenvolvidos, por exemplo, têm dívidas, relativas ao PIB, maiores que o Brasil.
Entendeu o que é dívida consolidada da União?
2. Continuando. Se desse valor (R$ 3,8 tri) subtrairmos tudo que o governo federal tem a receber resulta na chamada dívida consolidada líquida da União, em outras palavras, é tudo que o governo deve menos o que tem em caixa e a receber. Em agosto, a dívida consolidada líquida era de R$ 1,5 trilhão. Percebemos, então, que a União tem direitos a receber no valor aproximado de R$ 2,3 trilhões, que somando a dívida consolidada líquida (R$ 1,5 trilhão), resulta na dívida consolidada ( R$ 3,8 trilhões).
Falta só mais um conceito.
3. Agora vamos olhar os recursos que o governo recebe. Somando tudo que o governo federal recebeu durante os 12 meses, de setembro de 2014 até agosto de 2015, temos o valor de R$ 657 bilhões. Essas são as a receitas correntes líquidas, a soma de tudo que a União recebe regularmente.
Essas explicações são importantes porque o senador não está propondo valores limites, mas limites na relação entre o que o governo deve e o que recebe. Esse modelo é semelhante a limitarmos a dívida de uma pessoa em relação ao salário: se ganha mais pode endividar-se mais, se ganha menos pode endividar-se menos. O limite é uma relação entre salário e dívida. No caso do governo o limite é uma relação entre a dívida e as receitas.
Bem, voltemos ao projeto de resolução do senado.
O senador propõe um limite para a dívida consolidada, que inclui todas as obrigações financeiras da União, e para a dívida consolidada líquida, que é a dívida consolidada deduzidas as disponibilidades de caixa, aplicações financeiras e outros ativos financeiros. Ele não propõe um valor fixo, mas sim uma relação entre as receitas correntes líquidas, aqueles valores que entram regularmente para o caixa do Tesouro no período de um ano, e os montantes de dívida.
Sua proposta é que a dívida consolidada (DC) seja limitada a 4,4 vezes a receita corrente líquida (RCL) e que a dívida consolidada líquida (DCL) não exceda a 2,2 vezes as receitas correntes líquidas. Usando novamente a comparação com o salário: o valor máximo que uma pessoa poderia tomar emprestado seria 4,4 vezes o salário do ano.
Há, porém, uma regra de transição para os primeiros cinco anos, quando os limites são mais largos: nesse período a relação DC sobre RCL pode ser 7,1 e a DCL/RCL pode ser 3,8.
Para fazermos uma comparação, podemos pegar os valores do relatório de Gestão Fiscal do Poder Executivo do segundo quadrimestre de 2015. A relação dívida consolidada e receitas correntes líquidas estava em 5,81 vezes e a dívida consolidada líquida dividida pela receitas consolidadas líquidas estava em 2,22 vezes.
O que isso quer dizer? Primeiro que a dívida bruta hoje equivale a quase 6 vezes as receitas de um ano da União. Em segundo lugar, significa que se abatermos da dívida outros valores que a União tem a seu favor, chegaríamos à dívida consolidada líquida que vale 2,22 vezes as receitas de um ano da União.
Se compararmos com os limites dos primeiros 5 anos, os valores de hoje estariam aprovados e dentro dos limites. O grande problema começa quando a União precisar se enquadrar e baixar a relação para 4,4 vezes. Grosso modo, a dívida deverá cair, do nível de agosto, R$ 1 trilhão de reais em 10 anos, ou, R$ 100 bilhões por ano durante dez anos. Imaginou? Veja o esforço de hoje para economizar muito menos do que isso, feito neste ano de 2015, e as consequências a que estamos assistindo.
Não seria exagerado dizer que, se fosse hoje, com o comércio internacional deprimido, poderíamos ter 10 anos de recessão!!!
Tem ficado bastante evidente uma divisão de opiniões entre os brasileiros quanto à crença na política para a solução dos nossos problemas. De um lado, está o grupo que julga que todos os políticos visam somente seus próprios interesses e, assim, quando menor seu poder, melhor. De outro lado, estão aqueles que acreditam que somente através da política será possível limitar o poder econômico e diminuir a desigualdade sócio-econômica no país. Os primeiros apoiarão a limitação de recursos disponíveis para o executivo federal realizar suas políticas. Os segundos enxergarão nesse projeto uma tentativa de enfraquecer os governantes eleitos pelo povo e inviabilizar as políticas sociais em curso.
Toda vez que se aperta demais o controle das contas do governo quem mais sofre são os mais pobres: arrocho fiscal drástico corta gastos sociais e gera recessão que, por sua vez, gera desemprego.
Vários intelectuais estão coletando assinaturas de apoio através do manifesto: Contra o golpe fiscal na democracia brasileira. Afirmam que: “um projeto de resolução do Senado Federal (PRS nº 84/2007), da maior gravidade para a democracia brasileira, pode ser aprovado brevemente, sem qualquer debate público. O senador José Serra é o responsável por emenda a esse projeto que pretende definir limites draconianos para a dívida pública da União, de modo a forçar a obtenção de superávit fiscais primários em torno de 3% do PIB por vários anos.”
Advertem, ainda, que: “tamanha irresponsabilidade não pode resultar de um simples projeto de resolução que não será discutido pela Câmara dos Deputados nem poderá ser vetado pela Presidência da República, e que não foi sequer debatido pela sociedade brasileira. É urgente realizar esse debate para evitar a tragédia anunciada.”
A questão não é se devemos ser fiscalmente responsáveis ou não. Nem, tampouco, se devemos ou não ter limites. A questão é que, sem a devida discussão sobre esse tema, podemos estar criando um monstro. Como os vilões das aventuras fazem.
O Projeto de Resolução está no endereço: (http://www25.senado.leg.br/web/atividade/materias/-/materia/83503
O relatório de Gestão Fiscal do 2o. quadrimestre de 2015 está em:http://www.tesouro.fazenda.gov.br/documents/10180/352657/RGF2Q2015.pdf/3429fcd1-5785-4e09-96d5-22831d054931
O abaixo-assinado está em: http://www.peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR85783