ARTIGO
Daniel Pinha, professor do Departamento de História da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
A divulgação do vídeo da reunião ministerial de Bolsonaro não foi a “bala de prata” para derrubar o governo, muito menos enfraquecer o bolsonarismo. E o problema não está no conteúdo do material divulgado, mas na expectativa gerada em torno dele: nem o presidente nem a ideologia que lhe sustenta caem com uma “bala de prata”. Para cair o governo por meio de impeachment, como sabemos, o caminho é longo e depende do procurador Geral da República e do Congresso, um um processo que é jurídico e político. Para a queda do bolsonarismo, o percurso é ainda mais longo e tortuoso, algo que nem a circunstância hipotética do impeachment será capaz de derrubar.
Contraditoriamente, o vídeo enfraquece o governo e fortalece o sentimento político que o sustenta. O ponto central que levou à divulgação do vídeo é a acusação de Moro, mas há outros aspectos laterais que nos ajudam a entender a lógica e o funcionamento do governo, para além da exposição dos lunáticos olavistas, como mostrou o artigo de Valdei Araujo e Mateus Pereira aqui no Jornalistas Livres.
Dois aspectos, no entanto, aparecem de maneira “lateral” na contenda com Moro, mas são fundamentais para o nosso contexto atual: enfrentamento da pandemia de Covid (1) e crise econômica dela decorrente (2). A ausência do primeiro e a presença do segundo na reunião nos ajudam a entender os próximos passos e é um termômetro decisivo para o enfraquecimento do governo.
Sem bala de prata, com provas
O vídeo não deixa dúvidas de que a acusação de Moro é procedente. Bolsonaro queria usar a Polícia Federal para proteger a si, seus amigos e sua família. Mais grave ainda, como ferramenta de polícia política para perseguir e atacar adversários, como fica claro nos momentos em que ele reclama de falta de acesso a sistema de investigação e informação. Assistindo a reunião completa, fica claro que a fala de Bolsonaro sobre a necessidade de substituição do “chefe, do diretor e do ministro” é, na verdade, a conclusão de uma longa “bronca”, toda ela direcionada a Moro, que já contava cerca quase dez minutos.
Para “Bozo”, Moro não usava seu prestígio social e jurídico para defender aguerridamente o governo em meio aos ataques de todos os lados. Na hora de colher os louros, Moro colhia; na hora de defender o governo de ataques, se escondia. Bolsonaro cita o episódio de sua participação nas manifestações antidemocráticas de 19 de abril, e suas repercussões negativas na Imprensa e no Judiciário. Pedindo mais engajamento político de seus subordinados, insinuou que era o momento de ministros, com bom trânsito no Judiciário e na Opinião Pública, se apresentarem para a luta. Era óbvio que ele falava de Moro, um bolsonarista de última hora que, tal e qual um bom lava-jatista, apoiou o projeto sem fechar com um “pacote completo” que incluía “terra-planismo”, negacionismo científico, gestos milicianos e ataque ao STF.
Moro foi para o governo com nome próprio e histórico de parceria com o núcleo lava-jatista do STF – sobretudo Barroso, Carmem Lúcia, Fachin e Fux (In “Fux we trust”, lembram?). Ao seu modo, autoritário e esbravejante, Bolsonaro pedia a Moro que submetesse sua imagem ao bolsonarismo. Se tivesse consciência democrática, Moro sequer aceitaria o convite de Bolsonaro, depois de condenar à prisão o principal líder de oposição ao governo; tampouco aceitaria continuar se subordinando a um presidente que se soma a manifestações políticas que pedem retorno do AI-5. Isso para citar apenas dois exemplos.
Não é este o Sérgio Moro, mas dessa vez ele apresentou provas concretas: está lá, na voz de Bolsonaro, que exigia acesso a investigações de órgãos de inteligência. Que fique claro: ele não reivindicava a prerrogativa constitucional de demitir ministro nem nomear diretor, mas, sim, o acesso às investigações. Prometeu e fez. Demitiu Moro, Valeixo e o superintendente do Rio. Queria tornar oficial o que já é sua prática oficiosa (e criminosa), e ele esbravejou isto para quem quisesse ouvir no último dia 22, após a divulgação do vídeo. Se o governo cairá, diante de tantas provas e confissão, não sabemos. Dilma caiu por pretensas “pedaladas fiscais”; Temer não caiu, mesmo depois de ter sua voz exposta consentindo com crimes praticados por empresário corrupto (para dizer o mínimo). O processo de impeachment é político e juridico.
Cloroquina de Paulo Guedes
Paulo Guedes é uma das figuras mais representativas da mudança política que conduziu Bolsonaro da Câmara dos Deputados ao Planalto. Enquanto deputado, defendia um programa econômico nacional desenvolvimentista, alinhado ao modelo implementado pela Ditadura Militar. Orgulhava-se das obras monumentais, do padrão de desenvolvimento ancorado no Estado. Como candidato, já no quadriênio 2014-2018, enquanto exercia seu mandato, se alinhou ao discurso neoliberal como forma de agradar aos mercados e de polarizar com o governo Dilma, disputando o eleitorado de Aécio Neves, que em 2014 somara 49% no segundo turno.
Paulo Guedes era o nome ideal, com a experiência de quem atuou no regime ditatorial chileno de Augusto Pinochet. No governo, tal como Sérgio Moro, o “Posto Ipiranga” virou um elo entre governo e grande imprensa. Como forma de diferenciar Guedes e sua agenda econômica do restante do governo, comentaristas da Globo News cunharam o termo “ala ideológica”, como se Guedes não estivesse nela, mas, um quadro “técnico”, distante da política. Assim impôs-se um consenso em torno da necessidade da reforma da previdência como único caminho possível para uma modernização econômica. Paulo Guedes foi bastante poupado pela grande imprensa na cobertura sobre o vídeo e a reunião. Ali ele defendeu o turismo sexual em nome do livre mercado e a privatização da “porra” do Banco do Brasil, só para citar dois exemplos. Lamentou que o governo seja obrigado a subsidiar pequenas empresas para saída da crise – estas, as maiores geradoras de empregos do país.
Não há motivos, portanto, para não considerarmos ele também um lunático. Mais do que isso. Na reunião ficou claro que há dois programas econômicos em disputa no governo. Um encampado pelos generais, Rogério Marinho e Tarcísio Freitas; e outro defendido pelo Posto Ipiranga. O motivo central daquela reunião, aliás, era apresentar e discutir o “Pro-Brasil”, coordenado pelo general Braga Netto, ministro Chefe da Casa Civil. O programa recebeu o apelido de novo Plano Marshall (prontamente atacado por Guedes) pela injeção de investimento público na economia em contexto de reconstrução, comparando o pós-pandemia ao pós-guerra. Nada muito diferente da tendência mundial atual, entre países de economia neoliberal, como França, Alemanha e Estados Unidos.
Para Paulo Guedes, a saída continua sendo a radicalização das reformas neoliberais, privatizações (inclusive da “porra” do Banco do Brasil), cortes de direitos e retração econômica. Rogério Marinho, ministro da Integração Nacional, ressaltou que a crise econômica gerada pela pandemia não admite a reafirmação de dogmas, destacando a tendência internacional de maior intervenção econômica do Estado. Em resposta, Guedes reafirmou seu dogma: a saída para a crise da Covid é, ainda, a solução neoliberal, estreita e unilateral. Esta não conhece contexto, circustância, conjuntura internacional. Paulo Guedes revelou ali a sua própria cloroquina. Haverá um antídoto anti-bolsonarismo?
Um governo como este não cai por meio de uma “bala de prata”. A geração da expectativa da “bala de prata” é motivada pelo ritmo temporal acelerado e ansioso que caracteriza o público de internet (de esquerda e de direita). Um tempo atualista, como denominam Valdei Araujo e Mateus Pereira em suas pesquisas. Acompanham a cena política nacional como se estivessem assistindo uma série de Netflix em final de temporada. O tempo real da política, entretanto, é outro, conhece outros ritmos. O bolsonarismo, enquanto fenômeno político e cultural mais amplo, não termina com o governo Bolsonaro, como gosta de lembrar o historiador Rodrigo Perez. Ele se alimenta das manifestações golpistas de Weintraub, da fala de Damares sobre as feministas do Ministério da Saúde, da exaltação armamentista do presidente da Caixa, da fala de Ricardo Salles que vê na crise do corona ótima oportunidade para passar projetos anti-ambientais.
No vídeo, o bolsonarista-raiz reafirma o seu próprio modo de ver o mundo, a besta fascista que carrega em si. É o público que hoje se diz muito satisfeito com a atuação de Bolsonaro na pandemia, girando em torno de 25 a 30% pelas últimas de opinião. Para eles não há remédio a curto prazo; a solução imediata é colocá-los em minoria, diminuindo sua capacidade de capilarização no seio da sociedade. Infelizmente a pandemia de Covid atinge a todos. E a população brasileira está sentido na pele o que é ter um governo sem compromisso com as vidas. Países com situação sócio econômica como a nossa, como Argentina, tem números muito menores de infectados e mortes.
A reunião ministerial retratou, pela ausência, este descaso. Sobre as vítimas e ações de combate ao virus, nada. Em meio a maior epidemia dos últimos cem anos, a reunião deixou claro para qualquer brasileiro que o enfrentamento da pandemia e das vítimas não é prioridade neste governo. Uma política de morte posta a prova. A cloroquina de Paulo Guedes, por sua vez, aponta para uma política econômica “anti-povo” e altamente destrutiva para os mais pobres. Não é necessário ser de esquerda para chegar a essas conclusões. Não haverá bala de prata, mas há crise. Há mito capaz de sobreviver a ela?
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