A cidade de Mariana, conhecida antes como polo de minérios desde os tempos de Tiradentes, é hoje lembrada pelo vazamento de 55 milhões de m³ de lama, pelos estragos ambientais na bacia do Rio Doce e no mar, perdas impossíveis de calcular. De Bento Rodrigues, restou somente a memória de um distrito de 300 anos inundado em menos de 10 minutos, enterrado sob uma camada expressa da lama, agora seca, mas que ainda levanta um pó fino e denso, por irresponsabilidade de uma mineradora instalada ali perto há somente 39 anos.
A tragédia/crime ambiental foi provocada pelo rompimento da barragem de Fundão, pertencente à mineradora Samarco, controlada pelas empresas BHP Billiton e Vale S.A. O desastre segue impune depois de 6 meses desde que o seu rompimento atingiu violentamente várias comunidades da região, matou 19 pessoas, prejudicou a economia de dezenas municípios atingidos, além da produção agrícola de diversas famílias camponesas. A lama de rejeitos acabou com a produção dos peixes que alimentava os ribeirinhos e os indígenas, contaminou e destruiu a vida na bacia do Rio Doce, afetando milhões de pessoas que vivem e dependem dessa água e dessas terras. Essa é, sem dúvida alguma, a maior catástrofe socioambiental na história do Brasil e uma das maiores geradas pela megamineração de ferro no mundo.
Passados 6 meses do crime, o problema ainda persiste. Todos os desabrigados do distrito de Bento Rodrigues e Paracatú de Baixo, segundo distrito destruído totalmente pela lama, já foram realocados em casas dentro da cidade de Mariana(MG), com um contrato assinado por um ano pela empresa responsável. Entretanto, eles vem sendo tratados com preconceito e discriminação na cidade para onde foram compulsoriamente deslocados. Apesar da assistência imediata dos atingidos destes dois distritos, a grande maioria dos atingidos são habitantes de toda a região da Bacia do Rio Doce, que vai desde Mariana até Estado do Espírito Santo. Muitos destes ainda não receberam nenhuma forma de auxílio por parte da empresa ou do governo ou a devida atenção por parte da mídia tradicional.
” A gente tinha que ter uma TV pra mostrar tudo que a gente falou aqui porque a imprensa fugiu e já foi comprada.” (fala de uma das moradoras em reunião com o MAB e Ministério Público)
Depois de percorrer quilômetros pela bacia e após ouvir várias famílias, foi possível perceber que muitas continuam sem atendimento, não recebem nenhum tipo de reparação, sequer foram considerados atingidos pela empresa. A maioria das mulheres ouvidas nas cidades e comunidades visitadas, se veem em território hostil, se sentem culpadas pela tragédia e inconformadas com a humilhação e constrangimento da discriminação de parte dos conterrâneos, mas principalmente por terem seus direitos violados e agora estarem correndo atrás da empresa para conquistarem algum reparo que lhes garantam sossego para prosseguir a vida como era antes. Uma das moradoras relatou a falta de participação e informações dos atingidos no processo indenizatório proposto pela empresa Samarco, que não está sendo democrática, priorizando assistência e indenizações aos fazendeiros atingidos, enquanto a população mais pobre sofre diretamente com a perda da fonte de renda e com o aumento no custo de vida, enquanto continua se mantendo com um cartão cedido pela empresa, onde é depositado mensalmente o valor de R$ 880, mais 20% de um salário por dependente, além de uma cesta básica. Esse é o exemplo prático do que essas empresas, ao negligenciarem os direitos devidos aos moradores, fazem quando criam acordos individualizados que dificultam uma negociação em prol de um bem comum para a comunidade em geral.
Além da questão indenizatória, as mulheres moradoras das cidades vizinhas atingidas, questionam o fato de não serem escutadas e consultadas sobre a construção da nova moradia que gostariam de ter, se sentem constrangidas com o tumulto que as obras causam com muitas máquinas e homens circulando na região, muitas vezes sentindo medo de circularem sozinhas onde antes conviviam tranquilamente em ambiente harmonioso.
“ A cidade virou um canteiro de obras, poeira, barulho excessivo causado pelas máquinas que desde a tragédia, circulam dentro da cidade. Além disso, já foram identificados 14% dos moradores atingidos por dengue e alguns casos de estupro” – relata Raissa, moradora e voluntária da cidade de Barra Longa –MG.
Tão resistente como as marcas da lama, são as memórias na vida dos afetados: muitos têm problemas para dormir, alguns ainda sonham com a tragédia. Relatos sobre a perda do convívio social e brigas entre os moradores, transtornos psicológicos, aumento das tentativas de suicídio, casos de alcoolismo, violência doméstica e estupro, além do surgimento de problemas respiratórios nas crianças e depressão. Dados preocupantes que evidenciaram também os problemas de saúde que a tragédia causa diariamente na população desde o incidente.
Há uma desconfiança nas informações fornecidas por instituições públicas e privadas a respeito da potabilidade da água para consumo humano e utilização produtiva. Abastecida com a água captada no Rio, a população relata coceiras na pele e processos alérgicos. Ainda houve um aumento das tarifas de água, e transmissão do custo do “tratamento” para os atingidos. Um parecer do Ministério Público de Minas Gerais aponta que a lama da Samarco não parou de poluir os afluentes do rio Doce, mesmo após determinação judicial que obriga a empresa a adotar medidas para cessar o vazamento.
A empresa vem abandonando as negociações iniciadas com os movimentos sociais e ignorou diversos espaços de negociação coletiva, visando promover acordos individuais e desiguais. O Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) e o Movimento dos Atingidos por Mineração (MAM) acompanham mais de perto o caso dos atingidos desde o incidente e se propõem a organizá-los para que sejam feitos acordos coletivos que garantam seus direitos, porém já fizeram junto aos atingidos inúmeras reuniões com a Samarco, que não encaminha nenhuma ação efetiva que agregue os interesses coletivos. Esses movimentos denunciam a atuação e as omissões das instituições públicas na defesa dos sujeitos, bem como repudiam o acordo celebrado e feito à portas fechadas entre as empresas culpadas e os governos Estadual e Federal ao criar uma fundação que pretende definir todas as questões relacionadas à reparação das família atingidas. Esta mesma que definiria quem são e o que devem receber cada um dos sujeitos, sem que haja nenhuma consulta popular, fugindo das responsabilidades civis, criminais e financeiras, e querendo controlar os investimentos sociais e de recuperação do Rio Doce, sem ferir os interesses da mineração e desse modelo de desenvolvimento.
Depois desses 6 meses de impunidade e injustiças que nos atingem, a pergunta que não cala é: Que tipo de desenvolvimento uma empresa bilionária oferece para ganhar a licença pra matar e destruir? Que alternativas temos para construir uma sociedade mais soberana, justa, que respeite de forma igual a natureza, a cultura e o trabalho de homens e mulheres? Lamentavelmente, o cenário que estamos presenciando há 6 meses não mudou muito desde a nossa primeira visita à região. É portanto, a criminosa quem continua velando a cena do crime!
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