Se violência gera violência, cultura gera cultura

De 27 a 31 de outubro, El Salvador recebeu o II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária. Veja como foi o encontro e conheça um pouco mais sobre a história do país

por Ana Carolina Barão, com fotos de Diana Illescu, especial para os Jornalistas Livres

De 27 a 31 de outubro, El Salvador recebeu o II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária. Durante uma semana, diversas atividades culturais, debates, oficinas, círculos, passeios e intercâmbios aconteceram por todo o país com o objetivo de consolidar os processos de cultura viva comunitária.

Sob o tema “Convivência para o bem comum”, buscou-se conscientizar a população sobre a necessidade de modelos de políticas públicas para o fortalecimento e a multiplicação de iniciativas culturais, destinando o mínimo de 0,1% do orçamento nacional para tais ações e empoderando as comunidades em seus territórios.

No primeiro congresso que aconteceu em 2013, na cidade de La Paz, Bolívia, firmou-se um compromisso de se agregar esforços para que o próximo evento fosse realizado na América Central. Por isso, a Red Salvadoreña de Cultura Viva Comunitaria e o Movimento de Arte Comunitario Centroamericano (MARACA) se comprometeram a formar o comitê organizador e assumiram a responsabilidade de dar continuidade ao trabalho de consolidação nacional e regional em El Salvador.

A pequena extensão territorial de El Salvador (21.040 km²) não corresponde à grandeza de seu povo, que há mais de quinhentos anos resiste à exploração, ao imperialismo e a todas suas consequências: chacinas, extermínios, guerras civis e racismo. Para compreender a importância do congresso nesse país no qual se vê a cada esquina um homem armado com uma escopeta (guarda privada) ou aqueles que carregam facões com a mesma naturalidade que carregamos nossas mochilas, é preciso voltar no tempo.

Revolta de 1932

Antigamente, as comunidades indígenas de El Salvador eram muito ligadas a seus costumes, línguas, conhecimentos, a sua cultura. Suas terras eram distribuídas para trabalhar, formando assim um sistema de propriedade comunitária. No final do século XIX, latifundiários que pretendiam iniciar a cultura do café, desapropriaram essas terras que pertenciam aos povos originários, deixando-os ao relento.

A Grande Depressão que se iniciou em 1929, foi o período mais longo de recessão econômica do século XX, afetando diretamente El Salvador e sua economia cafeeira. A crise provocou a queda dos preços e consequentemente das exportações, fazendo com que tanto o governo quanto os latifundiários ganhassem menos. Assim, muitos funcionários públicos foram demitidos e os que permaneceram tiveram seus salários rebaixados. O mesmo aconteceu com os trabalhadores do campo, que passaram a ganhar a metade de seus rendimentos anteriores. As mulheres, que tradicionalmente já recebiam menos dinheiro e comida que os homens, ficaram nas piores condições.

Em 1931, aconteceram eleições presidenciais e, pela primeira vez, nenhum candidato foi imposto à população. Uma mulher, Prudencia Ayala, quis se candidatar, mas foi impedida, pois as mulheres ainda não tinham conquistado o direito de igualdade de voto. No mesmo ano, Arturo Araujo se elegeu com propostas progressistas, porém não cumpriu. A cada dia, o povo se revoltava mais, simpatizando e se aproximando do Partido Comunista, recém-criado (1930). Não tardou para que a repressão aumentasse, principalmente no campo.

Temerosos com as reivindicações populares, em 2 de dezembro de 1931, as forças armadas dão um golpe de Estado e impõem como presidente o General Maximiliano Hernández Martínez, conhecido como “el Brujo”. A crise não foi solucionada e os protestos aumentavam. Também aconteceram eleições municipais nas quais o Partido Comunista se elegeu, gerando mais atrito entre o governo.

Imersa em miséria e exploração, a sociedade civil se estruturava para uma insurreição. Cientes desses planos junto ao Partido Comunista, a polícia capturou Farabundo Martí e outros dirigentes. No entanto, os rebeldes já estavam organizados por todo o país, infiltrados inclusive no exército, e não havia tempo para detê-los. Praticamente aniquilado na capital, o levante que se iniciou em 22 de janeiro de 1932 tomou força na parte ocidental do país, onde indígenas e camponeses atuaram a partir das ordens de seus caciques e líderes locais. Rapidamente, o exército, sob o pretexto de salvar o país do comunismo, massacrou os povos originários, o que resultou em mais de 30 mil assassinatos.

Luíz Monterrosa, diretor do Instituto de Direitos Humanos da UCA (Universidade Centroamericana José Simeón Cañas)

Segundo Luíz Monterrosa, diretor do Instituto de Direitos Humanos da UCA (Universidade Centroamericana José Simeón Cañas), essa tragédia marcou o pensamento salvadorenho, “Na consciência das pessoas, ficou que a violência resolve e que os poderosos mandam. Aquele foi o momento em que os indígenas viram a oportunidade de lutar por seus direitos. Desde então, existe uma resistência para se aceitar indígena, porque ser indígena é ser comunista.”

Guerra Civil

Na década de 70, organizações de guerrilha e populares começaram a se construir em todo o país. Consequentemente, a repressão contra o povo e contra os membros da igreja adeptos à “teologia da libertação” se intesificou. Nesse cenário, em 1977, Monseñor Oscar Arnulfo Romero foi nomeado arcebispo e iniciou sua luta ao lado da população carente. No mesmo ano, aconteceram eleições presidenciais, mas mais uma vez o povo salvadorenho sofreu um golpe militar. Desta vez, quem assumiu o poder foi General Carlos Humberto Romero, responsável pela criação de uma lei que dava autonomia para o exército cometer todos os tipos de atrocidades contra a população, pelo aumento da repressão, assassinatos, capturas, torturas, desaparecimentos e pelo fortalecimento dos Esquadrões da Morte — grupos paramilitares de extrema-direita.

Praça Salvador do Mundo — Ritual de abertura do congresso

No entanto, a repressão não conseguiu conter a mobilização popular. Camponeses ocuparam terras e trabalhadores ocuparam fábricas. Todos se manifestavam por todo país e Monseñor Romero os defendia arduamente por meio de suas homílias, conhecidas como “a voz dos sem voz”. Em 23 de março de 1980, durante uma missa, Monseñor se dirigiu aos militares “Em nome de Deus e em nome desse povo sofrido, cujos lamentos sobem até o céu a cada dia mais tumultuosos, lhes rogo, lhes suplico, lhes ordeno em nome de Deus: parem a repressão!”. No dia seguinte, ele foi assassinado enquanto rezava uma missa. Sua morte foi um dos fatores para a eclosão da Guerra Civil, em 1981.

“O assassinato de Romero foi a tentativa da classe dominante de deter o avanço do povo a partir da ideia de que, se matassem o líder da mudança, todos os outros teriam medo suficiente para não fazer nada. Na época, o movimento marxista era composto majoritariamente por cristãos e Romero tinha esse rol de liderança da sociedade. No entanto, a ele não agradava a ideia da guerrilha e para a direita ele era um subversivo. Com o seu assassinato, uma grande quantidade de cristãos que viviam na cidade percebeu que não lhe restava alternativa que não se armar, e então partiram para o campo e uniram-se à guerrilha armada.” — Luís Monterrosa

A FMLN (Frente Farabundo Martí para la Liberación Nacional), que hoje é o partido que governa El Salvador, formou-se em outubro de 1980 para reunir forças e enfrentar o exército. Sob o pretexto de conter o avanço da guerrilha, as forças armadas salvadorenhas forjaram diversos massacres. No Massacre de Mozote, quase toda população civil foi assassinada, em sua maioria jovens menores de dezoito anos, além de gestantes, idosos e mulheres que foram estupradas. De 1600 pessoas, apenas Rufina Amaya sobreviveu.

Para financiar bombas de napalm, mutilações, incontáveis desaparecidos, milhares de refugiados e atrocidades que nunca saberemos, pois os que sobreviveram não possuem saúde psicológica para nos contar, calcula-se que os EUA, governado por Ronald Reagan e posteriormente por George H. W. Bush, transferiu US$7 bilhões ao longo de 10 anos ao governo de El Salvador.

A guerra cessou em janeiro de 1992, com o acordo de Paz de Chapultepec. Desde a aprovaçao da lei que anistia todos os agentes do Estado que cometeram violações antes ou durante o conflito armado, em março de 1993, os responsáveis seguem impunes: “Sin juicio no hay perdón”. (Frase que escutei em El Salvador e que significa mais do que a justiça institucionalizada. As pessoas querem que seus algozes sejam julgados , que lhes peçam desculpas e se arrependam do que fizeram. Enquanto isso não acontecer, não haverá perdão.)

Cultura da violência

A partir dos anos 70, muitos salvadorenhos se refugiaram clandestinamente na Califórnia, EUA, distanciando-se do cenário de horror que se alastrava por suas terras a cada dia. Ao chegaram, não foram bem recebidos sequer pelas pandillas (gangues) mexicanas. Nesse contexto de violência, fácil acesso a armamentos, drogas e desemprego, as primeiras pandillassalvadorenhas começaram a se formar. Até meados dos anos 90, os EUA já havia multiplicado todos os seus esforços para deportar grande parte dos pertecentes a esses grupos. A partir do regresso desses salvadorenhos, as pandillas se fortaleceram em toda América Central.

Hoje, os grupos mais fortes em El Salvador são a Mara Salvatrucha e a Mara 18, que se enfrentam constantemente. Elas são formadas por homens jovens pobres e de classe média baixa, que expressam sua rebeldia por meio da devoção total a seus grupos e as suas ações: extorsões, assassinatos por contrato, mutilações e sequestros. Estima-se que, atualmente, apenas em El Salvador, existam mais de 60 mil pandilleros. Isso significa que quase 1% da população é diretamente envolvida com as pandillas.

Para Monterrosa, jovens entre14 e 21 anos tendenciam formar parte de algo, o que é comum no processo de construção de suas identidades. “Para mim, a melhor definição de pandilla é que se trata de uma forma anômala de organização frente à exclusão. É rara, mas responde de alguma forma às necessidades dos jovens que estão excluídos do sistema”.

Pelas ruas de San Salvador, pessoas caminham com cuidado, estão sempre atentas, independentemente de suas classes sociais. Parece que vigiam e que esperam algo todo o tempo. Quem tem dinheiro, já fez de seu bairro condomínio de segurança máxima com direito a um, dois ou mais seguranças armados — recentemente, o país passou por seu mês mais violento, outubro, no qual foi registrado 17,5 assassinatos por dia. E sobretudo, vale ressaltar o trabalho da mídia burguesa e o empenho em reforçar a narrativa do terror e da violência 24 horas por dia.

*La Prensa Gráfica é um dos maiores periódicos de El Salvador e fica exatamente em frente à embaixada dos EUA, que é a segunda maior do mundo. A primeira é no Iraque.

Por toda história, há duas coisas que sempre se repetem e elas são homens e armas. A cultura da violência está diretamente ligada ao imperialismo, à exploraçao, ao patriarcado, à imposição e ao uso da força para isso. Em 2012, El Salvador foi classificado como o país com a maior taxa de feminicídio do mundo. Enquanto a desigualdade de gênero existir, a violência também vai. No entanto, quando se abrem portas para que as comunidades autogestionem suas atividades culturais, resgata-se aquele mesmo censo de comunidade e igualdade que existia entre os povos indígenas antes que suas terras fossem desapropriadas pelos latifundiários para o cultivo do café.

Cultura e resistência

Diferentemente da cultura pré-hispânica que foi resguardada entre as montanhas no México, El Salvador enfrentou dificuldades para proteger seus costumes. Por ser um território de passagem, recebeu influências que vieram tanto do norte quanto do sul do continente. Apesar do “American way of life”estar presente desde a moeda, que é o dólar, até a culinária, é nos povoados e na periferia que as tradições resistem, por meio de pessoas que, apesar de toda a tragédia que viveram, ainda carregam aquilo que sempre lhes deu força para enfrentar o que fosse: memória do que é comunidade.

Em El Salvador, ainda não existe nenhuma lei de arte e cultura como a Lei Cultura Viva sancionada ano passado pela presidenta Dilma Rousseff. Atualmente, discute-se na Assembleia Legislativa a criação desta lei, que seria a primeira do país. “Um dos esforços importantes nessa semana de Congresso é a incidência política no parlamento. Vamos colocar na agenda nacional o tema sobre a aprovação da lei de arte e cultura, que visa resolver todas as demandas históricas da cultura comunitária e também pleitear 1% do orçamento nacional para a cultura ou 0,1% para a cultura comunitária”, declarou Julio Monge, Coordenador Geral do II CVC.

Para Monge, é melhor que um jovem tenha em suas mãos um tambor do que uma arma. “Estamos convencidos de que o aporte para a cultura é necessário, urgente e imperioso. O nosso discurso frente à insegurança e à violência é que precisamos reocupar as ruas, as praças, os parques. Agora mesmo estamos no Teatro Nacional, que se localiza em um lugar muito perigoso, com muitos homícidios. Em contraposição, estamos aqui para reivindicar a vida, a cultura e o conhecimento.”

De todos os esforços do II Congresso Latinoamericano de Cultura Viva Comunitária, creio que o mais valioso seja o empoderamento das comunidades em seus territórios. Este é o momento de disputar os espaços que existem nas vidas jovens com cultura, educação, perspectivas e consciência. E realmente acredito que as coisas vão melhorar por aqui. É o que mais desejo. Pois, se existem duas coisas que salvadorenhos sabem fazer melhor que pupusas é se auto-organizar e lutar até o fim.

FONTES

http://www.elsalvador.com/articulo/sucesos/munguia-payes-hay-mas-pandilleros-que-militares-activos-90672

https://www.youtube.com/watch?v=T2B-R3XNBLU

http://www.tiki-toki.com/timeline/entry/83661/Evolucin-de-las-pandillas-en-El-Salvador-desde-1945#vars!panel=775723!

http://www.salanegra.elfaro.net/es/201208/cronicas/9301/

http://es.insightcrime.org/analisis/surenos-otros-pandilleros

Historia de El Salvador — De como la gente guanaca no sucumbió ante los infames ultrajes de españoles, criollos, gringos y outras plagas

http://g1.globo.com/mundo/noticia/2015/09/homicidios-em-el-salvador-atingem-cifra-historica-em-agosto.html

https://rccs.revues.org/4830

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