Por Gilvander Moreira1
Em palavras de fogo, Carolina Maria de Jesus, no livro Quarto de Despejo, de 1960, denuncia a brutal injustiça social. Diz ela: “Hoje não temos nada para comer. Queria convidar os filhos para suicidar-nos. Desisti. Olhei meus filhos e fiquei com dó. Eles estão cheios de vida. Quem vive, precisa comer. Fiquei nervosa, pensando: será que Deus esqueceu-me? Será que ele ficou de mal comigo?”. Após o Brasil ter sido tirado do Mapa da Fome, durante o Governo Lula, agora o Brasil foi empurrado novamente para o Mapa da Fome. O enorme número de pessoas pedindo comida, e pesquisas recentes indicam que a fome voltou de forma brutal no Brasil. Mais de 19 milhões de pessoas estão na extrema pobreza (renda mensal abaixo de R$89,00 per capita) passando fome e 27,7% da população (58 milhões de pessoas) estão com insegurança alimentar, segundo pesquisa de Food for Justice. Cadê o respeito ao direito à alimentação prescrito na Constituição Federal?
O número de pessoas em situação de rua cresce cotidianamente beirando a 500 mil. O desemprego bate recorde diariamente. As campanhas para arrecadação de alimentos se multiplicam. Os clamores são ensurdecedores, tais como: “Estou deixando de tomar café da manhã para que minhas irmãzinhas possam comer alguma coisa”. “Vários dias por semana vou tentar achar algo para comer no resto da feira ou dos sacolões”. “Dói demais ver e ouvir uma criança da gente, em prantos, pedindo pão e a gente não ter como alimentar nossos filhos”.
Um poema profetiza: “Quem tem fome, tem pressa. Não pode esperar. Então corre irmão, vamos. Nesse momento tem gente morrendo de fome, no nosso Brasil. A fome é perversa. E quem alimenta esse monstro do mal é a desigualdade social. Tem barriga vazia fazendo chorar …”1. Por amor ao próximo todo povo precisa, urgentemente, se fazer solidário e acudir de forma solidária todos/as que estão passando fome. Campanhas para arrecadação de cestas básicas e todos os gestos de filantropia são necessários com urgência neste momento. Que todos/as doem o máximo possível.
Entretanto, faz-se necessário atacar as causas que estão gerando a fome que implode as pessoas por dentro: a estrutura fundiária baseada no latifúndio há 521 anos; o agronegócio que, em latifúndios, com uso indiscriminado de agrotóxico, tecnologia de ponta e muitas vezes submetendo os/as trabalhadores/as a trabalho análogo à situação de escravidão; política econômica neocolonial que concentra cada vez mais riqueza nas mãos da elite; repasse de cerca de 40% do orçamento do país para pagar juros e amortização da dívida pública que já foi paga várias vezes; injustiça tributária (proporcionalmente os pobres pagam muito mais impostos do que os ricos); imposto irrisório sobre herança; falta de taxação justa das fortunas; desmonte do Estado brasileiro com privatizações que são tremendamente danosas ao povo e encarecem o custo de vida; asfixia do SUS e da agricultura familiar; falta de reforma agrária; invasão dos territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais; a política genocida do inominável antipresidente que estica e aprofunda a pandemia matando de forma orquestrada mais de 520 mil irmãos e irmãs nossos/as, deixando milhões com sequelas graves e piorando de forma brutal a crise econômica que recai como um fardo insuportável, principalmente nas costas da classe trabalhadora; redução do valor real do salário mínimo e das aposentadorias; salário mínimo de apenas R$1100,00, enquanto o preço da cesta básica está em R$600,00, segundo o DIEESE2; Extinção do Conselho de Segurança Alimentar e Nutricional (CONSEA), em fevereiro de 2019, por Bolsonaro, entre outros fatores. Tudo isso tece relações sociais que estão fazendo a fome se alastrar de forma vertiginosa, pois aumentam em progressão geométrica a injustiça social e reproduz cotidianamente uma das maiores desigualdades sociais do mundo.
No meio do fogo do latifúndio, o capitalismo – atualmente mundializado e em crise estrutural desde a década de 1970 -, ao avançar sobre os territórios, expropriando os camponeses, tem transformado o Brasil em imensas pastagens e imensas monoculturas de cana, de eucalipto, de café, de capim etc. Agronegócio não produz alimento; produz, sim, commodities, que são mercadorias primárias para exportação, exportadas com isenção de Imposto sobre Circulação de Mercadorias (ICM). Agronegócio produz, sim, desertificação de territórios, violência no campo, desmatamento, envenenamento da terra, dos cursos de água, do ar e epidemia de câncer, alzheimer e várias doenças que se multiplicam no meio do povo pelo exagero de agrotóxicos que aumentam a quantidade do que é produzido, mas com péssima qualidade sanitária. Muitos insistem em manter grande parte do povo brasileiro como rebanho a ser tocado como gado, conforme diz a música Vida de gado, de Zé Ramalho: “Eh, ôô, vida de gado / Povo marcado, ê”. Ainda em 1989, o sociólogo José de Souza Martins atestava: “Os pobres da terra, durante séculos excluídos, marginalizados e dominados, têm caminhado em silêncio e depressa no chão dessa longa noite de humilhação e proclamam, no gesto da luta, da resistência, da ruptura, da desobediência, sua nova condição, seu caminho sem volta, sua presença maltrapilha, mas digna, na cena da História” (MARTINS, 1989, p. 12-13).
Ano a ano, no planeta Terra, nossa única Casa Comum, o ser humano e toda a biodiversidade estão em perigo crescente de um apocalipse provocado pelo capitalismo com seu atual modo de produção devastador socioambientalmente em progressão geométrica. Em sua etapa monopolista, o capitalismo no campo com seus complexos industriais de produção agropecuária tem colocado questões inéditas e desafiadoras para a luta pela terra, pois “esse processo contínuo de industrialização do campo traz na sua esteira transformações nas relações de produção na agricultura, e, consequentemente, redefine toda a estrutura socioeconômica e política no campo” (OLIVEIRA, 2007, p. 8). O futuro da humanidade e de todas as espécies vivas está ameaçado como nunca esteve. Como uma cruel máquina de destruir vidas humanas e ecológicas, nos 521 anos de colonização do nosso país, contando o período da acumulação primitiva, o capitalismo está se mostrando cada vez mais feroz e destruidor, atualmente em forma de imperialismo global hegemônico capitaneado pelos Estados Unidos e pelas empresas transnacionais.
Convivendo com o povo simples, oprimido e superexplorado, Jesus Cristo alia a solidariedade libertadora à luta pela justiça profunda. Jesus aprendeu, colocou em prática e ensinou a pedagogia da partilha dos pães de forma tão enfática que as primeiras comunidades cristas narraram seis vezes nos quatro evangelhos da Bíblia (Jo 6,1-15; Mt 14,13-21; Mt 15,32-38; Mc 6,32-44; Mc 8,1-10; Lc 9,10-17), pedagogia que envolve uma série de passos articulados e interdependentes:
1º) Jesus “atravessa para a outra margem” (Jo 6,1), ou seja, vai para o meio dos “estranhos”, considerados impuros e hereges. O Galileu se coloca no meio do povo faminto. Ouçamos o povo sofrido com seus clamores!; 2º) Vê a realidade nua e crua a partir dos empobrecidos. Coloquemo-nos no lugar social dos famintos! “Sente aí e escute o povo”, diz Lúcia, defensora dos Direitos Humanos, em reunião com o povo em situação de rua, no Filme Anel de Tucum; 3º) Comove-se com a dor do povo sofrido. Tenhamos empatia!; 4º) Provoca a todos/as para a buscar solução para o grave problema social, fruto de injustiça social: a fome. “Vocês é que têm de lhes dar de comer” (Mt 14,16; Mc 6,37).; 5º) Discerne junto com o povo faminto qual projeto pode ser o caminho da superação da fome; 6º) Excluí a postura de quem queria se esquivar da responsabilidade diante do problema – “despede as multidões para elas irem …” (Mt 14,15) – e o projeto de mercado apresentado por discípulo Filipe: “comprar pão para …” (Jo 6,7; Mc 6,37). A idolatria do mercado é a causa da fome e jamais será a solução; 7º) Acolhe o projeto socialista, de partilha – humano – apresentado pelo discípulo André: “Eis uma criança com cinco pães e dois peixinhos” (Jo 6,9). “Temos só sete pães e alguns peixinhos” (Mt 15,34, Mc 8,5); 8º) Propõe organizar o povo em grupos de 5, de 10, de 50, de 100 etc; 9º) “Diga ao povo para se assentar na terra” (Mc 8,6), não no sofá e nem só diante da internet. Ou seja, a solução da fome passa necessariamente pela partilha, democratização e socialização da terra, que é reforma agrária e resgate, identificação e titulação de todos os territórios dos Povos e Comunidades Tradicionais; 10º) Abençoa os pães e os peixes, ou seja, cultiva a espiritualidade e a mística que envolve nossa vida e toda a realidade; 11º) Conta com lideranças no meio do povo para “repartir o pão!”; 12º) Propõe que seja recolhido o que está sobrando: “recolham o que sobrar”.
Assumir radicalmente o projeto transformador e libertador de Jesus de Nazaré: eis a tarefa que temos que fazer, com urgência.
Referências.
MARTINS, José de Souza. Caminhada no chão da noite: emancipação política e libertação nos movimentos sociais do campo. São Paulo: HUCITEC, 1989.
OLIVEIRA, Ariovaldo Umbelino de. Modo de Produção Capitalista, Agricultura e Reforma Agrária. São Paulo: Labur Edições, 2007. Disponível em http://www.geografia.fflch.usp.br/graduacao/apoio/Apoio/Apoio_Valeria/Pdf/Livro_ari.pdf
29/06/2021
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – 16ª Live: A FOME VOLTOU … QUE FAZER? – Mov. Inter-Religioso do Vale do Aço, MG, 27/6/2021
2 – “Corpus Christi” e os corpos do povo sendo violentados: e nós? , com frei Gilvander
3 – Live – DECISÃO DO STF CONTRA DESPEJOS NA PANDEMIA: análise de seus benefícios e limites – 05/6/2021.
4 – Live – A luta por MORADIA no Brasil: todo despejo é cruel e desumano, na pandemia, pior e inadmissível.
5 – Luta contra a mineração em Minas Gerais e na Amazônia e os territórios indígenas
6 – Estenda a mão a quem passa fome na Ocupação Rosa Leão, em Belo Horizonte, MG. Seja solidário/a!
7 – MLB ocupa Carrefour em Belo Horizonte: Por “Natal sem fome”, contra racismo. Fora, fascista!22/12/20
1 Fonte: Poema “Quem tem fome tem pressa”, no site http://gilvander.org.br/site/%ef%bb%bfpoema-quem-tem-fome-tem-pressa/
2 Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos.
1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III
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