Encontro Alcides em seus 42 anos, na esquina da rua 4 com a 9, no centro de Goiânia. Em seus olhos há moços risonhos, uma alegria peralta. Alcides vende seus limões na calçada, orgulhoso da qualidade de seus frutos, pés de fruta que ele mesmo plantou em seu quinhão de terra às margens da capital. O melhor limão do Brasil, afirma o goiano ao lado de sua bicicleta de 35 anos, um veículo tão velho quanto sua faca amolada, a brilhar em ferrugem coberto de histórias.

No centro da cidade busco a rua 57, o  local que, há 31 anos, ocorreu o desmonte da cápsula que abrigava o Césio 137 e provocou um dos maiores acidentes nucleares da história, em área urbana. Pergunto para Alcides se estou próximo, ele coça a cabeça e me diz: ah, seu Césio morava logo ali, indicando-me com o braço a rota a seguir. Alcides é o rumo que se cumpriu, na cidade em que a vida pulsa entre limão, araticum e pequi vendidos frescos e aromatizando as vielas. 

Encontro a rua 57 após passar por mais uma feira de roupas, espaços constantes na cidade e com uma população de manequins frequentes em todo centro da cidade. Tudo recorda a obra de Siron Franco, entendo agora tais encontros visuais.

A rua 57 e o terreno baldio, local de profundo silêncio, onde morava Devair e a família. Incrível pensar no encanto com o brilho azulado do pó que se iluminava, confundo-me em emoção quieta que urtica meu couro. A menina Leide a ingerir a luz, seu corpo impedido de ir sepultado à terra sobre protesto de milhares que temiam a morte pela morte. Estranho, há um abismo invisível e leves frases fundas, tão firmes. Grafismos tristes onde evitar o amor é muito mais, uma lembrança que coça. Atroz. Nada a fazer, um medo para esquecer e a lembrança da menina, citada em nome nos muros que demarcam a área, tudo tão baldio, tal travesseiro ruim para os braços.

Cheguei em um terreno sem saída na rua 57, rodeado por placas de vende-se e aluga-se. Passaram-se 31 anos e um abismo tão fundo reside no centro. Pequenos fragmentos de luz residem, poeme-se é o que restou da rua 57, em seu chão tem covas e escolas.

Tudo aqui é o que se consegue ser no Brasil, acredita-se no futuro e o passado são antigas lembranças, uma máquina de moer carne ou enrolar folhas de fumo, gente que engole luz e trabalha vendendo fruta ou buscando chumbo, um coração em manto milhões de peças de roupas a vestir cada corpo e boca serena, nossos pecados que viram-se em ontem.

Tal pajés em aldeia, o goiano faz seu fumo e sua empada tradicional, comerciantes árabes e evangélicos agitam o farto comércio e artistas populares a cantar jacarandá e cipó caboclo.

Não preciso ir muita além para falar de fato trigenário, tudo são símbolos do antes. O trem de Alcides é azul.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

A poeta e o monstro

A poeta e o monstro

“A poeta e o monstro” é o primeiro texto de uma série de contos de terror em que o Café com Muriçoca te desafia a descobrir o que é memória e o que é autoficção nas histórias contadas pela autora. Te convidamos também a refletir sobre o que pode ser mais assustador na vida de uma criança: monstros comedores de cérebro ou o rondar da fome, lobisomens ou maus tratos a animais, fantasmas ou abusadores infantis?