Por Marcus Vinícius Beck, do Jornal Metamorfose, especial para Jornalistas Livres
“Não podíamos urinar sobre a guerra, sobre a vileza e corrupção da guerra: era a guerra que urinava sobre nós os seus estilhaços e os seus tiros, nos confinava à estreiteza da angústia e nos tornava em tristes bichos rancorosos”, disse o escritor António Lobo Antunes, em “Os Cus de Judas”, obra na qual conta sua experiência como combatente durante a guerra da independência angolana, entre 1971 e 1973.
Assim era o sentimento da população portuguesa em 25 de abril de 1974, quando a ditadura fascista implantada por António Salazar nos anos 1920 veio abaixo: não se podia mais tolerar sangue sendo derramado por causa da política imperialista na África. Então a rádio Renascença de Lisboa, desafiando a censura e a repressão, tocou a música “Grândola, Vila Morena”, símbolo das lutas pela redemocratização em 74.
Antes de tudo, é preciso ressaltar que Antonio Salazar, um professor da universidade de Coimbra, chegou ao poder por meio de um golpe que batizara o regime inspirado no fascismo de Mussolini e nas doutrinas católicas como Estado Novo. Autocrata, caquistocrata e tirana, a ditadura isolou a terrinha por 41 anos: Salazar mandou prender comunistas, anarquistas e todos aqueles que falassem mal de suas intenções de um sujeito ressentido. Só o generalíssimo espanhol Francisco Franco era seu aliado.
O que, cá para nós, implicava automaticamente numa atrocidade. Cansado da política de manutenção das colônias portuguesas à base de tiros e mortes, o Movimento das Forças Armadas (MFA) ocupou quartéis, academias militares e aeroportos, além de emissoras de TV e rádio. Presos políticos começaram a ser soltos. Tinha finalmente início a Revolução (com erre maiúsculo, tesão e resistência) mais poética do século 20. Que, entre outras coisas, levou Chico Buarque a gravar “Tanto Mar”, um louvor à insurreição.
Mas Chico não foi o único brasileiro a se ver esperançoso com a queda do salazarismo: Glauber Rocha, junto com o Colectivo de Trabalhadores da Actividade Cinematográfica, foi às ruas para registrar soldados com cravos na ponta de seus fuzis e portugueses gritando “povo unido jamais será vencido”.
“As Armas e o Povo”, de fato, se tornou um inestimável documento histórico, com imagens captadas no pulsar da Revolução e que hoje gozam do status de clássico do cinema europeu militante. Em 2019, a Cinemateca Portuguesa restaurou o filme e os cineastas Fernando Matos Silva e Luís Galvão Teles partilharam suas experiências em filmar “no meio de uma multidão, sem ser absorvido nela”.
As razões para isso são simples: os cineastas que participaram do documentário não fizeram muita questão de esconder o lado político que mais lhes apeteciam e, portanto, nunca reivindicaram o posto de difusores dos acontecimentos. Ao contrário, eram participantes ativos da Revolução, filmaram a efusão humana e colheram depoimentos (especialmente Glauber e sua fúria revolucionária) – escutados com prazer e entremeados aos sonhos de uma vida melhor, com liberdade e futuro.
Libelo de cinema direto, com enquadramento tremido e microfone aparecendo na cena, “As Armas e o Povo” testemunhou pungentemente o espírito de um povo que cansou de ser calado, perseguido, preso e torturado. E, claro, há certa graça nisso, como quando Glauber confronta a linguagem clássica do documentário com sua metralhadora verbal que originou perguntas por vezes invasivas, é verdade, mas próprias do estilo que o tornou uma das mentes mais brilhantes do audiovisual no século 20.
Além do brasileiro, que estava em exílio à época, o filme contou com a participação de Cácio de Almeida, Sá Caetano, José Fonseca e Costa, Eduardo Geada, António Escudeiro, Fernando Lopes, António de Macedo, João Moedas Miguel, João César Monteiro, Elso Roque, Henrique Espírito Santo, Artur Semedo, Fernando Matos Silva, João Matos Silva, Manuel Costa e Silva, Luís Galvão Teles, António da Cunha Telles, António-Pedro Vasconcelos, Monique Rutler, nomes conhecidos na Europa.
Cada plano e frase provocam uma profusão de sentimentos de quem tinha certeza de que os tempos obscurantistas haviam ficados para trás. É um exemplo magistral do cinema engajado, com a pretensão de eternizar pelas lentes da câmera um tempo presente de dimensão histórica, mostrando que só há chance de sonhar quando todos tiverem consciência que a coletividade é fundamental no processo histórico: “As Armas e o Povo” toca no fundo da alma, seja de quem o viu pela primeira vez lá nos anos 70 ou de quem o descobriu agora com a versão restaurada da Cinemateca Portuguesa.
Fruto de um país medicado contra a amnésia social, “As Armas e o Povo” chegou a ser exibido na televisão portuguesa, em horário nobre, disseminando a mensagem antifascista a um público amplo. Muitos se deslumbram com a nitidez fotográfica e a vida que as cores ganham na tela, capazes levar o espectador de novo para aquelas ruas de Lisboa tomadas por utopias. Outros se comoveram com as sequências de depoimentos de presos políticos humilhados nos calabouços da repressão.
Num tempo em que assistimos a emersão de movimento fascistas, “As Armas e o Povo” nos alimenta com a possibilidade de resistir contra os recrutas zeros e saudosos dos anos mais turbulentos da história. A emoção é inegável: nas imagens, sentimos as ruas vibrarem e pulsarem. E hoje temos a certeza de que uma sociedade se torna livre da tirania apenas quando ela preserva sua memória coletiva para não mais incorrer nos erros, como fazem os portugueses todos os anos desde 1974.
Por essas e por outras, Portugal está medicado contra os sintomas do fascismo e da amnésia social tirânica para nunca mais cair na enrascada de repeti-la, dessa vez como farsa. “As Armas e o Povo” pode ser visto, gratuitamente, no YouTube.
Não deixe de assistir.