Revolta em São Mateus: Nunes troca UPA prometida por vila de contêineres para sem-teto

Moradores esperavam a construção de uma unidade de pronto atendimento no terreno, mas Prefeitura vai colocar contêineres de sem-teto no local
Instalação de contêineres para pessoas sem teto na Vila Reencontro, no Centro de SP — Foto: Divulgação/Secom

O terreno na rua Forte dos Franceses, em São Mateus (zona leste de São Paulo), já tinha destinação certa: lá seria construída uma Unidade de Pronto Atendimento para atender aos moradores dos prédios populares que estão sendo construídos no bairro. Milhares de novos moradores ocupam agora a região. Muitos vieram de favelas e de moradias precárias, que trocaram por apartamentos novinhos de quase 50 metros quadrados, produzidos por uma construtora privada e pelos programas de moradia voltados à população de baixa renda. A UPA é uma reivindicação dos moradores, porque a UBS mais próxima, já sobrecarregada, demora pelo menos três meses para agendar uma simples consulta médica. O novo equipamento de saúde viria muito a calhar, já que apenas em um dos prédios construídos pela CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano do Estado de São Paulo), 75% dos moradores são pessoas com deficiência e necessidades especiais. Este, aliás, foi um dos quesitos da seleção dos moradores do programa habitacional do governo estadual. São cadeirantes, pessoas colostomizadas, idosos, pessoas com vários graus de deficiências físicas e mentais. Mas a prefeitura resolveu, sem avisar ninguém, mudar o destino do terreno: em vez da UPA, lá será instalada uma vila de contêineres destinados a servir de moradia provisória para a população em situação de rua. Os moradores dos prédios estão revoltados.

“O prefeito Ricardo Nunes quer tirar as pessoas vivendo nas ruas do centro da cidade, trazendo-as para cá. Mas aqui não é um depósito de gente”, diz Aparecida P., portadora de um tumor no cérebro e mãe de uma jovem com necessidades especiais. Ela mora no prédio da CDHU que fica em frente ao terreno onde a prefeitura pretende instalar o gueto de contêineres, um projeto que atende pelo nome vistoso de Vila Reencontro e que já se espalha por 8 núcleos na cidade.

Pelos planos da prefeitura, em São Mateus serão de 200 a 240 contêineres, abrigando até 960 pessoas que hoje vivem em barracas espalhadas principalmente pelo centro. “É um escândalo. As famílias que vivem nos prédios populares também provêm de situações de carência extrema. Também temos pessoas que não conseguem emprego, que são doentes, que têm de escolher entre comer ou pagar a conta de luz”, diz uma moradora. “Mas, para atrair as pessoas vivendo em situação de rua para as vilas Reencontro, a prefeitura está prometendo dar a elas, além do contêiner adaptado para moradia, formação e encaminhamento profissional, atendimento médico, social e 4 refeições diárias. É justo isso? Não, não é. Isso mais parece um artifício do atual prefeito para se reeleger”, diz a moradora Rafaela Barbosa.

A revolta dos moradores daquele setor de São Mateus ancora-se na consciência generalizada de que o prefeito de São Paulo, Ricardo Nunes, tem um ponto fraquíssimo, que poderá ser explorado por seus adversários nas eleições municipais deste ano. Trata-se do degradado centro da cidade, endereço mais frequente entre as pessoas e famílias vivendo em situação de rua. Ninguém duvida que está em curso uma corrida desesperada para “limpar” o centro dos “indesejados”, famílias inteiras que foram lançadas à rua por terem desabado naquilo que as estatísticas chamam de “linha da miséria”. São mulheres, idosos, pessoas com deficiência, crianças, além de homens alquebrados pela dureza da vida, uma população que não para de crescer e que já conta com mais de 50 mil pessoas, mais do que a população de 507 cidades paulistas! “São milhares de barracas que transformaram a cidade no mais espetacular camping selvagem do mundo! Então, no entender do prefeito, essas pessoas precisam deixar o centro o quanto antes, naquilo que parece ser uma típica manobra eleitoreira”, diz Adriano Diogo, defensor dos Direitos Humanos.


Foi neste contexto que começou a se materializar, no finalzinho de 2023, a menos de um ano das eleições municipais, o projeto das Vilas Reencontro. Trata-se de módulos de 18 metros quadrados, feitos de contêineres marítimos reformados e adaptados para uso habitacional. Em cada um desses módulos podem se apertar famílias de até quatro pessoas vivendo em situação de rua. Os contêineres são agrupados em terrenos cedidos pela prefeitura, formando as tais “vilas” de que fala o título do projeto. Na teoria, a família contemplada com um contêiner ganha na loteria: as vilas oferecem todos os dias café da manhã, almoço, lanche da tarde e jantar para os moradores em refeitório central, atendimento psicológico e social, playground, lavanderia, brinquedoteca, cozinha, horta, quadras poliesportivas, além de guarda-roupa, cama, geladeira, fogão de duas bocas elétrico, panelas e louças, que integram o enxoval de cada módulo. E tudo isso de graça! Sem pagar aluguel, luz ou água! Milagre?

Não! Em primeiro lugar, o preço é altíssimo. A implantação de cada contêiner da Vila Reencontro situada no Anhangabaú, por exemplo, custou R$ 85 mil, sem contar o valor do terreno de 1.900 metros quadrados, cedido sem ônus pela Prefeitura, e que se fosse somado ao preço dos contêineres poderia mais do que dobrar o investimento necessário por família.

O tamanho do “imóvel” é outro problema. Pai, mãe e filhos são obrigados a conviver em diminutos 18 metros quadrados, incluindo banheiro e cozinha.

Para piorar, morar dentro de uma Vila Reencontro tem começo, meio e fim. É uma moradia transitória. Ninguém é dono de nada e pode-se ser expulso do local se a entidade administradora da vila considerar que o morador fere as normas de convivência. Segundo levantamento feito pelo Tribunal de Contas do Município, uma em cada 3 pessoas que saíram das Vilas Reencontro já implantadas o fizeram em razão de terem sido expulsas. Mas mesmo quem se comporte de maneira exemplar poderá permanecer na vila pelo prazo máximo de 24 meses, depois do que será convidado a se retirar. Em 24 meses, supõe a Prefeitura, o indivíduo terá se organizado, estudado, arrumado um emprego legal e poderá, portanto, pagar o seu próprio aluguel.

Projeto é caro, transitório e pequeno


A maior parte das vilas de contêineres está sendo administrada por entidades religiosas, como a Associação Evangélica Beneficente (AEB), a maior organização contratada, em troca de gordos repasses de verbas municipais. Pela gestão das Vilas Reencontro do Jabaquara 1, Anhangabaú, Cruzeiro e Pari, com capacidade para atender até 1.176 pessoas, a AEB recebe R$ 23.387.192,40 por ano. Vinte e três milhões! Ou seja, cada pessoa, seja adulto, seja criança, custa R$ 20 mil por ano, ou R$ 1.657 por mês. E sem contar o aluguel, já que os contêineres são fornecidos diretamente pela Prefeitura!


A prefeitura já entregou oito unidades das Vilas Reencontro, totalizando 2 mil vagas de acolhimento. A assessoria de comunicação da Prefeitura afirma que só houve edital de Chamamento Público para as vilas Cruzeiro e Anhangabaú, mas a organização escolhida desistiu da empreitada. A substituta, a AEB, entrou sem o chamamento público. Em todas as demais, também houve dispensa do chamamento público. Segundo a Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), que encabeça o projeto de contêineres, a dispensa do chamamento público decorreu da pressa (“celeridade”, eles dizem) em inaugurar os serviços. É claro! Tem de ser antes da eleição, para render votos para o atual prefeito.

Adriana do Nascimento, moradora e vizinha do terreno em que a prefeitura pretende instalar a nova Vila Reencontro, em São Mateus, ficou animada com o projeto: “Se vai ter brinquedoteca, playground, atendimento psicossocial e médico, isso vai acabar beneficiando os moradores do bairro, que poderão frequentar esse espaço”, disse ela. Não, Adriana! Todas as vilas Reencontro são fechadas. Só entram pessoas autorizadas pela administração.

Os moradores dos prédios no entorno exigem que o projeto da UPA seja retomado e que seja cancelada a construção da Vila Reencontro. “Morar com dignidade implica ter acesso à saúde, ao lazer, à educação, à cultura. Queremos isso para o nosso bairro, e não a transformação dele em um depósito de gente”, diz Núbia Santos.

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