Reunião ministerial: totalitarismo à vista

 

ARTIGO

Fábio Faversani, professor titular de História Antiga na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP)

Assisti à reunião ministerial de 22 de abril completa e cheguei a duas conclusões:

1) O governo Bolsonaro não tem rumo nenhum, nem para fazer o mal que deseja, e tem impulsos diferentes, sempre contra os interesses populares e muitas vezes em confronto aberto e direto com a democracia; e 2) que, apesar disso tudo, o eleitorado que apoia o governo não se afastará do presidente, mas, ao contrário, o que se vê ali galvaniza esse apoio e fortalece a militância em sua defesa, que é alimentada por um discurso que sustenta uma saída totalitária. Parece absurdo? Vejamos ponto a ponto.

A reunião tem início com o ministro Chefe da Casa Civil, general Braga Netto apresentando o esboço de um plano de recuperação da economia que ele alcunhou de “Plano Marshall brasileiro”.  Esse apelido dado pelo militar já deixa claro um entendimento pífio, quer da economia, quer da história. O que se vê é uma lista na qual tudo é prioridade, confusamente lida, como um aluno apresentando seminário que não preparou. Um vexame!

Mas isso não assusta nem afasta o eleitor fiel de Bolsonaro. Para esses, só Paulo Guedes entende de economia e ninguém mais, nem o presidente, nem seus eleitores. Essa ideia da economia como um domínio técnico misterioso a ser gerido sem transparência, delegado a um todo poderoso que assegure que os interesses do “mercado” serão atendidos não é nova. Basta lembrar do papel de um Henrique Meirelles com Lula ou, pior, Joaquim Levy com Dilma. O problema é que Guedes também não entende muito de economia, como logo demonstrou, delirando com um Brasil que ia começar a voar e que a saída para a crise econômica se dará com investimentos privados exclusivamente (em nenhum lugar do mundo isso vai acontecer, muito menos no Brasil!). Para ele, acabar com desigualdades era coisa que o PT fazia e o governo de Bolsonaro não segue esse caminho. Para o eleitor de Bolsonaro é isso mesmo! Políticas de redução de desigualdades é sinônimo de dar bolsa para quem não trabalha (ideia absurda e antiliberal defendida largamente também pelo PSDB por seguidas campanhas) e que o governo deve ajudar apenas os ricos, os grandes empresários, que vivem com inúmeras dificuldades e são eles que geram riquezas, empregos.

Em outras palavras, Bolsonaro dá consequência a uma ideia muito difundida de que favorecer os pobres é favorecer mais pobreza e que isso não deu certo com o PT, quebrou o Brasil. O que se deve fazer é isso mesmo: favorecer os ricos, que vão gerar mais riqueza e fará o Brasil um país próspero, com muito investimento e empregos. Não se trata de reduzir as desigualdades, mas de escapar individualmente à pobreza. Nesse entendimento, quem fica pobre quando o mercado cresce é vagabundo. Cada um olha para si e pensa: “Eu não sou vagabundo; se os ricos começarem a ganhar mais eu vou ter oportunidade e vou ganhar mais!”. Quem tem que se preocupar, nesse sentido, é quem não correr atrás. O que uns chamam de precarizados, muitos se percebem como empreendedores, futuros casos de sucesso, que o Estado só atrapalha.

Como essa população cresce, um grande contingente sem direitos e sem perspectiva de ter aposentadoria vai sendo integrado como parte importante do eleitorado (cada vez mais importante do que aqueles com carteira assinada, com direitos). Assim, para muitos, não faz sentido a defesa de direitos, que são vistos como privilégio de vagabundos, pois são para cada vez menos pessoas que têm direitos. A cada vez que temos uma reforma trabalhista, uma reforma previdenciária diminui o número de pessoas que têm direitos… e elas não começaram com Bolsonaro. Para esse público, a visão econômica de Guedes, excludente, que aprofunda desigualdades e retira direitos, é motivo para aplauso. O Estado não vai nos proteger. Quem diz isso é petista demagogo ou, pior ainda, os privilegiados entre os privilegiados, os vagabundos entre os vagabundos, os funcionários públicos! Esse, como disse Guedes, o governo deve abraçar e colocar uma granada em seu bolso. Deveria gerar horror, especialmente quando a pandemia mostra que o serviço público é fundamental! Mas não…

Faz muitos anos e muitos governos que essa demonização do serviço público como privilégio, ineficiência e vagabundagem é reforçada. Nenhum eleitor de Bolsonaro se assusta com a ideia de colocar uma granada no bolso do funcionalismo público. Pelo contrário, todos que são contra a democracia e o acesso universal aos serviços básicos para todos puxam o pino da granada rindo! É horrível, é chocante, mas é assim. Para os bolsonaristas, Guedes está sendo sincero, correto e agrada o mercado. Isso que importa. A chave, afinal, há décadas é essa: agradar ao mercado sobre todas as coisas. Guedes repete a música de Raul Seixas: “A solução é alugar o Brasil!”

Depois, Bolsonaro faz um ataque à imprensa. Diz que são todos uns pulhas, inimigos a serem ignorados na melhor das hipóteses. Ao longo da reunião, o presidente retomará esses ataques. Qual eleitor de Bolsonaro não assina embaixo e se engaja nisso? Precisa ser lembrado que não foi Bolsonaro e seus eleitores que criaram palavras de ordem contra a imprensa? Xingar a Globo só se tornou hábito da direita recentemente. Tiveram com quem aprender. O pouco apreço à imprensa visto como mentirosa e odiosa não é novo e nem é exclusividade de bolsonaristas. A questão das concessões publicas para órgãos de imprensa, o domínio de uma imprensa corporativa e todos esses temas nunca foram debatidos e enfrentados no Brasil e nossa democracia frágil tem aí belos pés de barro.

Onyx Lorenzoni repete a mesma ideia de que o PT quebrou o Brasil e o governo Bolsonaro estava recuperando a economia. Veio a pandemia e a histeria que a acompanha prejudicou o governo, que deveria retomar o caminho original que estava levando o Brasil a voar. Obviamente, os indicadores do Brasil pré-pandemia eram os de “pibinho”. Não havia nenhuma economia pronta para voar. Mas a parte mais delirante é que o Brasil estava tendo amplo reconhecimento internacional positivo. A pergunta que fica é: em que planeta está esse senhor? O Brasil perdeu a confiança internacional especialmente, mas não apenas, por seu atrelamento automático aos EUA e por sua agenda ambiental desastrosa. A baixa confiança em uma recuperação econômica com um governo claramente sem projeto e uma Chancelaria olavista delirante completam o cenário desastroso.

Mas, para o eleitor de Bolsonaro, ser amigo do Trump é tudo. Para esses, Trump não tem nenhum respeito internacional porque defende os EUA sobre todas as coisas. Bolsonaro também. É a luta contra o globalismo! Faz sentido? Nenhum! Mas é uma mensagem fácil de entender. O globalismo é ruim e o isolamento do Brasil é bom. Ficamos com Trump e de que nos importa o mundo? A relação com a China ocupa um lugar especial no pensamento anti-globalista e anti-comunista do eleitor de Bolsonaro. Para esses, ali é só comércio, sem ideologia. Isso foi repetido por Guedes. Alguém ainda precisa contar isso para os chineses. Enquanto eles não sabem, a posição do Brasil no mercado internacional vai se deteriorando. Adiante, Bolsonaro também reafirma essa confusão.

Mais adiante o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, delira que após a pandemia cinco ou seis nações vão se sentar para redefinir a ordem mundial. A nova globalização seria pautada em valores de liberdade e excluiria a China. Para o eleitor de Bolsonaro, nada demais. É um desejo, delirante. Se você disser para um eleitor de Bolsonaro que o Brasil não estará no centro de negociações sobre a ordem pós-pandemia e que, ao contrário, a China estará, ouvirá que você está torcendo contra o Brasil, que não é patriota e é comunista. Esse tipo de bobagem, de descalabro absurdo não afasta o eleitor de Bolsonaro, ao contrário, faz com que o sentimento de patriotismo se reforce. 

O ministro do Desenvolvimento Regional, Rogério Marinho, apela para que as mentes estejam abertas para o momento extraordinário e que o Estado precisa ter um papel destacado e atuar para dar liquidez ao mercado, diferentemente do que se esperaria antes da pandemia. Diz o óbvio: o endividamento do governo vai ser enorme e Guedes e Onyx estão errados ao falar em retomar o rumo anterior. O governo deveria focar em dar liquidez ao mercado, ajudar quem precisa e reduzir desigualdades regionais e melhorar a infraestrutura. Atacou quem quer manter os dogmas de sempre, mesmo a situação sendo totalmente nova e exija respostas novas. Falou e ninguém ouviu.

Mas, bem ao final da reunião, Guedes retomou a palavra e disse que não é apegado a dogmas, mas sabe tudo sobre retomada da economia, estudou todos os casos importantes, Alemanha da década de 40, Chile da década de 70 – atualizadíssimo o “Posto Ipiranga”. Mesmo que não seja obviamente verdade, para o eleitor de Bolsonaro o que interessa é que Guedes é quem governa a economia e governa para o mercado, como outros antes dele. As fissuras são claras, e Braga Netto com seus planos desenvolvimentistas e Marinho com suas dúvidas sobre o dogma não mandam. Quem manda é Bolsonaro e Bolsonaro manda Guedes comandar. Essa confusão é a alegria dos apoiadores de Bolsonaro e sua aposta de que o PT quebrou o Brasil e a redenção está no “Posto Ipiranga”.

Qual o prazo de validade dessa promessa que não vai se cumprir? É impossível dizer. Mas uma crise econômica brutal vem aí e a renovação do bode expiatório está pronta: o PT quebrou o Brasil e, depois, a pandemia foi usada por governadores e prefeitos, além da imprensa, para disseminar o pânico e, com isso, quebrar o governo Bolsonaro. Para completar, o STF não permitiu que o governo federal conduzisse a situação, dando poder para governadores e prefeitos. Assim, STF se soma aos culpados pelas mortes e pela brutal crise econômica que virá. A resposta para a crise econômica será desmantelar o serviço público, cortar mais direitos, adotar medidas que favoreçam as grandes empresas e os mais ricos. Afinal, políticas que visem maior igualdade quebram o país. O Estado salva os ricos e daí para baixo é salve-se quem puder.  

Depois, vem o Ricardo Salles, do Meio Ambiente, e declara que o governo deveria se aproveitar que há uma pandemia e passar todas as reformas infralegais sem nenhum debate. Para ele, a pandemia é uma oportunidade de ouro, pois a retirada de toda a proteção hoje existente seria fácil agora que a imprensa só fala em Covid. Sem a atenção da sociedade, restaria “passar a boiada”. O eleitor bolsonarista aplaude isso, de retirar a proteção ao meio ambiente, aos povos originários e quilombolas, tudo isso que só atrapalha. O discurso dele é que sem o Congresso e sem a sociedade para debater as medidas, o único obstáculo seria o Judiciário, que decide contra tudo que o governo tenta fazer de ilegal. Para o eleitor bolsonarista, o Judiciário protege quem não merece. A justiça é injusta. Merece ser atacada e desrespeitada. Nada novo.

O Presidente do BNDES, Gustavo Montezano, diz que concorda plenamente com Salles e que a pandemia é uma oportunidade impar para retirar tudo que atrapalha os negócios. A lógica do governo e dos eleitores que o apoiam é clara: proteger meio ambiente e populações vulneráveis é coisa de ONGs pilantras que controlam a imprensa e a Justiça. O debate público (ou mi-mi-mi) e a democracia atrapalham que o governo Bolsonaro faça o que é preciso fazer. Essas falas que são escandalosas e chocantes para quem tem apreço pela democracia, soam como música para eleitores de Bolsonaro que a desprezam como um empecilho.

Bolsonaro retoma a palavra para reclamar de seus ministros que só querem elogios e porque as críticas são todas para o presidente. Diz que ninguém pode deixar de defendê-lo e seguir o que ele “pensa”. Assim, o presidente afirma sua posição de que ele é mais importante do que qualquer ministro. Esse é um elemento novo e que tem sido muito bem aceito pelos bolsonaristas. A ideia é que os ministros devem ser fiéis ao presidente e devem se expor nas disputas políticas. Bolsonaro está lá para brigar. Isso inclui os ministros. No caso do Ministério da Justiça é dito que falta combate e são feitos vários ataques à inação de Moro.

O então ministro Sérgio Moro se manifesta a seguir e nada diz sobre as críticas de Bolsonaro claramente dirigidas a ele e às suas omissões na defesa do presidente. Ele apenas pede para incluir a segurança pública e o controle da corrupção no plano Pró-Brasil, apresentado na abertura da reunião. Ao eleitor bolsonarista, Moro aparece acovardado e sem compromisso com a proteção do governo. A recusa de Moro se dá porque ele não quer defender o governo, e não porque defender o governo ou o presidente, família e amigos é errado. Fosse errado, teria dito algo. Não disse nada. Para o eleitor bolsonarista, Moro é, assim, um egoísta arrogante que só pensa em si. Portanto, não há conflito moral ou ético na cobrança do presidente por proteção. As coisas seriam assim mesmo, sempre. As investigações não são feitas para apurar a verdade, crimes, mas, sim, para prejudicar as pessoas. A polícia não tem uma atuação republicana e impessoal. Sendo assim, se há uma investigação é porque alguém quer prejudicar alguém. No caso, opositores querem investigar Bolsonaro, sua família e amigos.

O que Bolsonaro e seus eleitores esperam não é o funcionamento republicano das instituições, que nunca existiu. O que eles querem é que as instituições assegurem a sua impunidade, que não sejam feitas investigações que o comprometam, pois isso seria armação da oposição para prejudicar o governo. Sendo assim, ou as instituições funcionam para proteger Bolsonaro e sua família e amigos, ou vai mudar a pessoa lá na ponta, o chefe, o ministro. Historicamente, isso está na memória da população desde o famoso “Engavetador Geral da República”, que atuou no governo Fernando Henrique Cardoso. Mais recentemente e em sentido oposto, sob o comando do próprio Moro essa justiça injusta foi exposta, funcionando com uma celeridade e seletividade ímpares não para punir crimes, mas para destruir um setor político e muito especialmente inviabilizar a candidatura de Lula à Presidência. Sendo assim, parece claro que a justiça não funciona de forma republicana, mas serve para punir quem não tem força política.

O então Ministro Nelson Teich diz que primeiro é necessário enfrentar a pandemia porque, enquanto não houver resposta para a doença, o medo não permitirá que a adoção de nenhuma medida no campo econômico tenha sucesso. Expressa ainda sua preocupação que os hospitais particulares vão ter prejuízo nesse período de Covid por conta da restrição de atendimento a outros pacientes. Assusta um ministro da Saúde estar mais preocupado com lucros dos hospitais privados do que com a saúde pública? Com o fortalecimento do SUS? Assusta mais ainda essa passagem não ter sido comentada em lugar nenhum que eu tenha visto. Impressiona que o debate sobre como enfrentar a pandemia não se torna o centro do debate da reunião ministerial depois disso. Há um entendimento tácito, rapidamente expresso pelo presidente, de que a pandemia não é nada disso, muitos mortos por Covid são vítimas de comorbidades, segue o baile. Nada que assuste o eleitor de Bolsonaro que acha que a pandemia é uma invenção da extrema-imprensa e governadores e prefeitos de oposição para prejudicar o presidente com a ajuda do STF, que não permite que o governo federal atue.

Mais adiante, tais agentes públicos serão qualificados como “bosta”, “estrume”.  O presidente do Banco Central diz nesse sentido que respeitar o teto dos gastos e a reforma da Previdência levaram à queda dos juros. Mas que há muito medo, gerado pela imprensa, e que por isso haverá dificuldades econômicas. As dificuldades econômicas não virão pela resposta insuficiente do governo, mas pelo medo incutido na população por prefeitos, governadores e imprensa, com apoio do STF. Reitero: o governo prepara a justificativa para a catástrofe econômica e a agenda de reformas que aprofundem a desigualdade, o desmonte do serviço público e a retirada de direitos. Vamos ter um mix de o PT quebrou o Brasil com a pandemia não permitiu nossa economia voar como base para um recuo sem precedentes na proteção aos trabalhadores, na qualidade do serviço público e na proteção a setores vulneráveis da sociedade.

O presidente da Caixa, Pedro Guimarães, fala dos ladrões, todos do PT, PMDB que cobravam 25% de juros. Afirma também que não deu dinheiro para a Band e por isso recebeu críticas da emissora. Menciona a seguir a detenção da filha de um deputado que teria desrespeitado o isolamento e diz que, se fosse com ele, pegaria suas 15 armas e seria matar ou morrer, mas não deixaria a polícia atuar. O governador do estado em que ocorreu o fato seria ladrão também. Reclama que todos são ladrões e não eram criticados. Agora, os que compõem o governo Bolsonaro não estão roubando e estão sendo atacados. Volta-se à cobrança por proteção. Essa contraposição é central: os outros são ladrões e mal intencionados e vale tudo para se contrapor a esses: descumprir a lei, desrespeitar direitos.

Por outro lado, proteger os seus também é marcado por um vale tudo. Sendo assim, a base de apoio do governo não trabalha com a distinção respeito ou desrespeito às leis. O pressuposto é que todos desrespeitam as leis, que são complicadas, difíceis de obedecer por cidadãos e governo. O que faz uns serem punidos, ou não, é o controle político das instituições. Assim, para o bolsonarismo é fundamental defender o desrespeito às leis e às instituições para alcançar seus fins. Atender à lei é obedecer aos tribunais, aos governadores, aos prefeitos, aos parlamentos. Para o bolsonarismo (e esse é um ponto fundamental!), cada vez mais a aposta totalitária sobe no sentido de existir só o Chefe Supremo e seu povo único, sem intermediação nenhuma (no máximo com a mediação das mídias sociais).  

A ministra Damares Alves afirma que tudo é uma questão de valores e coloca a par dos povos tradicionais a existência de um 1,3 milhão ucranianos e fala que o STF deve retomar a pauta da liberação do aborto e que o Ministério da Saúde está tomado por feministas que só têm essa pauta. Afirma a seguir que houve um complô para transmitir a Covid para indígenas e que houve uma operação secreta com generais da Amazônia para conter isso que seria feito só para prejudicar Bolsonaro. Damares afirma que governadores e prefeitos estão violando direitos humanos ao prender pessoas que desrespeitam o isolamento. Anuncia que o Ministério está tomando providências, que vai jogar duro, que vai prender governadores. Isso tudo, que pode parecer chocante, para o eleitor bolsonarista é música: ataque às feministas, inimigos imaginários na Amazônia (ONGs talvez?), colocar na prisão os adversários políticos. O compromisso com uma saída autoritária para a crise que se forma no pós-pandemia está anunciado de forma explícita nessa reunião ministerial em vários momentos.  

O ministro da Educação, Abraham Weintraub, desenvolve a ideia de que não há povos indígenas, ou povos tradicionais. Há um só povo, o povo brasileiro. A relação do governo deve ser direta com o povo e esse povo uno e indivisível deve ser atendido de forma direta, sem intermediação das instituições. O ministro da Educação expressa uma teoria totalitária e obviamente isso agrada bastante aos que apoiam Bolsonaro. Ele afirma que aceitou o convite para participar do governo para acabar com Brasília, pois a capital federal “é um cancro de corrupção e privilégio”. Interessante que ele afirma que tais características se mantêm sob o governo atual. Seu projeto é defender a liberdade e, diz ele, “por mim, botava esses vagabundos todos na cadeia, começando pelo STF”.

Paradoxalmente, a defesa da liberdade é construída pelo encarceramento dos agentes públicos que formam “Brasília”. O Estado é o inimigo do governo Bolsonaro. As instituições são um obstáculo para que o governo liberte o povo. Há uma luta e é preciso que todos no governo se protejam uns aos outros. Queixa-se que está respondendo processos no Comitê de Ética da Presidência da República. Isso porque é militante e se coloca contra os privilégios. Os inimigos o perseguem e caberia aos amigos dar-lhe proteção e não ouvidos aos inimigos. A proteção, assim, não é apresentada mais uma vez como privilégio, mas como salvaguarda para lutar contra os privilegiados, contra “Brasília”. Afirma que a lei não é igual para todos e, claro, não deve ser. O problema é quem a lei vai favorecer.

A resposta do Ministro da Educação é clara: temos que ser protegidos e a Justiça não pode nos alcançar porque a Justiça é parte desses privilégios contra os quais estamos lutando. As noções de justiça e liberdade são entendidas de uma forma diferente por pessoas que apoiam Bolsonaro e os que se opõem a ele. E são esses entendimentos diversos que levam as pessoas a terem essas posições políticas diversas. Não é o contrário! Por isso é inútil querer convencer que o entendimento dado a esses valores por Bolsonaro é absurdo. Quem apoia Bolsonaro concorda com esses valores e quem se opõe a Bolsonaro discorda. O que está em disputa não é Bolsonaro, mas a adesão a valores democráticos e humanitários que são anteriores à aparição de Bolsonaro no centro do cenário político brasileiro. Bolsonaro sempre falou os absurdos que fala hoje. Revelar que Bolsonaro e seus ministros falam absurdos, como nesse vídeo, não vai tirar apoio dele. Pelo contrário, vai galvanizar ainda mais os que o apoiam em torno dele. A democracia brasileira é frágil e permitiu que ataques às instituições e à República fossem longe demais. E esses ataques vem de longe! As fórmulas todas usadas pelo ministro da Educação apontam claramente para uma ruptura institucional, representada por destruir “Brasília”.  

Partindo da fala de Weintraub, o presidente diz que concorda com ele, que Brasília é perigosa e que ele mesmo se aproximou de quem não devia. Os privilegiados se afastam do povo. Bolsonaro diz que as pessoas não lembram, mas a liberdade foi assegurada por 1964 e que, caso o outro lado tivesse tomado o poder, a miséria seria geral no Brasil. A falsificação que o golpe de 1964 nos livrou do comunismo que dominava o poder no Brasil, como revisionismo histórico sem fundamento, só pode seguir sendo afirmado porque nossa democracia não teve uma justiça de transição vivida em outros países. Já virou rotina elogiar a ditadura no Brasil. O presidente recomenda, então, que todos se aproximem do povo, que no domingo saiam às ruas e rompam o isolamento (apesar das críticas que virão dos “bostas” de sempre). Reclama que a família é perseguida injustamente e aí diz que é preciso trocar todo mundo para que sua família não seja prejudicada. É preciso se defender e proteger os seus familiares e amigos. Lamenta que seja muito fácil impor uma ditadura nesse momento em que todos estão em casa. E defende que é por isso que quer que o povo se arme. O povo não vai permitir uma ditadura e vai defender a liberdade. “Povo armado jamais será escravizado.” E quem escraviza o povo? Os poderes constituídos, prefeitos e governadores “bostas” que fazem decretos para manter as pessoas em casa.

Bolsonaro condena que existam divisões dentro do governo e que haja ministros que sejam elogiados pela imprensa por seu bom trabalho, “apesar do presidente”. Apela para que todos se mantenham unidos porque o que “os caras querem é a nossa hemorroida, é a nossa liberdade”. O governo luta contra os “bostas” privilegiados e esses querem tirar a liberdade deles, incriminando-os. Se não houver proteção e informação para os que estão no governo, a ditadura dos “bostas” privilegiados se instaura e quem está no governo vai acabar na cadeia, perderá a liberdade. Há um embate no horizonte próximo e o que está em disputa é quem vai acabar na cadeia: os que estão no governo ou os que estão na oposição. Alguém vai perder a hemorroida. Quem não tem proteção, perde a liberdade. Não é possível que todos sejam livres. Há uma guerra aberta e uns vão prender aos outros. Tanto faz se crimes foram cometidos ou não. É o dilema da “libertoida”: todos que estão na política serão atacados em suas hemorroidas, mas quem tem proteção sairá livre. É isso que Bolsonaro esperava de Moro, que seguisse fazendo o trabalho que realizava antes de ser ministro: livrar amigos e prender inimigos.

Não existe impessoalidade e nem funcionamento institucional independente jamais. A fragilidade de nossa democracia levou a esse entendimento de que a justiça é sempre injusta. Importa controlá-la, pois a hipótese de seu funcionamento independente e impessoal inexiste. O que se colocou em disputa é quem controla a Justiça: “Curitiba”, “Brasília” ou Bolsonaro? “Curitiba” foi eliminada da disputa.

A reunião ministerial mostrou muita confusão, muito palavrão, ausência completa de planos para enfrentar a pandemia, quer do ponto de vista sanitário quer do ponto de vista econômico. A catástrofe se avizinha e é no conflito mais agudo que virá no pós-pandemia que o governo mostra elementos importantes em que busca uma unidade que ainda não tem.

Em primeiro lugar, no campo econômico, a ala militar reclama uma pauta desenvolvimentista e há uma ou outra voz que reclama políticas de proteção social. O próprio presidente demonstra que não adere totalmente à orientação de Guedes que é clara: aprofundar a concentração de riqueza, desmantelar o serviço público e retirar direitos.     

Em segundo lugar, no campo político, aprofunda-se assustadoramente a saída autoritária. Isso está no cerne de toda a reunião ministerial. O pós-pandemia trará um aprofundamento dos ataques do governo às instituições e na aposta de que o governo deve se relacionar diretamente com o povo, um povo único, patriota e fiel ao Chefe Supremo. Aqueles que não estão de acordo são os privilegiados e devem ser neutralizados, presos e destruídos. Afinal, a liberdade dos inimigos significa um ataque à hemorroida do governo. Não pode haver oposição, pois a oposição obsta as ações do governo no curto prazo e os coloca na cadeia no final.

Em terceiro lugar, como base a essa unidade do povo, as noções de que direitos são privilégios e, portanto, proteção é coisa de gente “mimizenta” e direitos é coisa de feministas, gayzistas, abortistas etc. A unidade do povo é dada por uma pauta moral e econômica excludente, de ódio.

Unindo esses três elementos se vê claramente que a reunião ministerial aponta para um rumo em que a nossa frágil democracia está em grave risco. O fato de termos chegado até aqui mostra que as instituições falharam em exercer o tão falado sistema de pesos e contrapesos. Uma ruptura institucional é declaradamente desejada e tem apoio por parte da população que não tem qualquer apreço pela democracia. Esse grupo, que não é pequeno, não se afastará de Bolsonaro por ele desrespeitar as instituições e as leis. Pelo contrário, é isso que esses apoiadores do governo mais desejam. A cada arroubo autoritário, maior o apoio e agressividade desse setor. 

De fato, temos um Judiciário que funciona mal e é venal. Está aí claramente uma imprensa corporativa que não tem compromissos sólidos com a democracia e que é alimentada pelos interesses mais obscuros de forma sistemática. Presente também se faz uma classe política largamente corrompida, desacreditada, e afastada dos interesses dos diversos segmentos das classes populares. Sobretudo, temos a precariedade e o limitado alcance dos direitos de cidadania. Foi esse conjunto de fragilidades que permitiu que ocorresse a eleição de Bolsonaro. Ou as instituições funcionam e dão um basta a esse curso claro de desrespeito à ordem democrática e à construção de uma saída autoritária para a crise ou a democracia brasileira perecerá com o caos pós-pandemia. A reunião ministerial deixou claro: ou é #foraBolsonaro ou é #tchauDemocracia.  

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Boas reflexões, sem muita capacidade de síntese, rs. Essa interpretação de que o vídeo reforça a imagem do B. junto aos seus 30% se tornou comum já no dia seguinte à divulgação da reunião. Esse é o paradoxo do fascismo suicidário (Safatle): quanto pior, melhor; quanto mais insano, canhestro e vazio, mais me representa. Como lidar com isso? Essa é uma das perguntas mais importantes.

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