Retrospectiva – Cultura pop: 2017, um ano melhor à distância

Rose McGowan, que virou símbolo do movimento #MeToo de denúncias de assédio em Hollywood

 

Em um ano cuja maior marca para a cultura pop em um âmbito social sem dúvida foi as denúncias de assédio que tomaram Hollywood de assalto a partir de outubro, é fácil fazer o balanço desse período de 12 meses como negativo – no entanto, a erupção e exposição desse problema sistêmico na indústria americana pode ser visto, no futuro, como o começo de uma mudança sísmica nas atitudes profissionais em relação a mulheres no mercado de trabalho (dentro e fora do entretenimento). Como diz o ditado americano, hindsight is 20/20 – ou seja, do ponto de vista do futuro, a visão dos acontecimentos do presente é mais clara, e suas consequências conhecidas.

Tudo começou em 5 de outubro de 2017, quando uma reportagem do The New York Times assinada por Jodi Kantor e Meghan Twohey trouxe denúncias de várias mulheres, incluindo as atrizes Ashley Judd e Rose McGowan, contra o megaprodutor Harvey Weinstein, responsável por filmes vencedores do Oscar, como Shakespeare Apaixonado e Pulp Fiction: Tempos de Violência. Matérias subsequentes do Times e do The New Yorker (essas assinadas por Ronan Farrow) expuseram um comportamento recorrente e um modus operandi fixo da parte de Weinstein, enquanto mais mulheres da indústria do entretenimento contaram suas histórias envolvendo o produtor ou outros grandes nomes de Hollywood nas redes sociais ou em outros veículos.

O ator Kevin Spacey

Kevin Spacey causou furor ao se assumir homossexual poucas horas depois de serem divulgadas denúncias contra ele (inicialmente feitas pelo também ator Anthony Rapp), em um contraste duro entre a forma com a qual a imprensa reportou os acontecimentos e a recepção pública deles. Enquanto a maioria dos veículos destacaram a “saída do armário” de Spacey, a comunidade LGBT em peso rejeitou o “pedido de exílio” do ator, que buscava a saída fácil para seu pesadelo particular de relações públicas. Em 2017, astro de Hollywood relacionando pedofilia com homossexualidade não nos desce mais.

Weinstein foi demitido da companhia de produção que tocava junto com o irmão, Bob; Louis C.K., comediante prestigiado e multiplamente premiado, perdeu papéis futuros (em Pets: A Vida Secreta dos Bichos 2) e teve a première de seu filme mais recente (I Love You Daddy) cancelada; Ed Westwick também viu o cancelamento de sua série, White Gold, e do especial para a BBC Ordeal By Innocence, que iria ao ar nesse final do ano; John Lasseter foi afastado do cargo de chefão da Pixar/Disney Animation; Andrew Kreisberg (The Flash, Supergirl) e Mark Schwahn (The Royals) não trabalham mais como showrunners em suas séries; e por aí vai. Em 2017, decidimos que, pelo menos de forma imediata, muita coisa “não desce mais”.

Mulher-Maravilha (direção: Patty Jenkins)

O ano também pode ter parecido negativo para o lado financeiro da indústria do cinema. Até a sexta (29), o mercado americano arrecadou US$ 10.93 bilhões (ou em torno de R$ 36.20 bilhões), uma queda de 2,8% em relação ao mesmo período do ano passado – após os dois últimos dias, poderemos provavelmente confirmar que 2017 foi o pior ano da indústria desde 2014. A queda é mais significativa quando se percebe que não só o ingresso de cinema atingiu preços recordes nesse ano, mas que o conjunto de filmes lançado nesse ano pelos grandes estúdios não deveria ter resultado nesse recorde negativo.

O ano de 2017 foi ano recorde nos lançamentos de filmes de super-heróis – a Fox lançou Logan, da franquia X-Men (US$ 616 milhões); A Marvel Studios atacou com um trio de peso formado por Homem-Aranha: De Volta ao Lar (US$ 880 milhões), Guardiões da Galáxia Vol. 2 (US$ 863 milhões) e Thor: Ragnarok (US$ 847 milhões); E a DC acertou o alvo com Mulher-Maravilha (US$ 821 milhões) e errou com Liga da Justiça (US$ 648 milhões). Seis lançamentos que serão logo superados pelos dez (dez!) que virão em 2018 – mas que passaram longe de ser o bastante para compensar as decepções de outras apostas altas dos estúdios.

Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (direção: Luc Besson)

Entre esses “naufrágios”? Adaptações insípidas como Valerian e a Cidade dos Mil Planetas (custo US$ 177 milhões, bilheteria US$ 225 milhões); continuações vastamente superestimadas como Carros 3 (pior bilheteria da franquia até hoje com US$ 383 milhões) e Alien: Covenant (custo US$ 97 milhões, bilheteria US$ 240 milhões); tentativas pífias de criar novas franquias e “universos cinematográficos” como A Múmia (US$ 409 milhões, muito abaixo do esperado para lançar uma série de filmes); e lástimas como Tempestade: Planeta em Fúria (US$ 208 milhões) e Baywatch (US$ 177 milhões).

Essa queda de bilheteria significa que, por mais um ano, executivos de Hollywood provaram que não entendem em nada do que o seu próprio público quer. A tomada de decisões precisa “mudar de marcha” urgentemente na indústria, e precisa ser repensada no contexto século XXI, em que sair de casa para ir ao cinema é um luxo, e não uma obrigação. Foi-se o tempo em que eles ditavam o que nós poderíamos ver – na era da Netflix e da on-demand, quem escolhe a programação somos nós, o que coloca um peso maior de responsabilidade no consumidor sobre os caminhos que a indústria toma.

A equipe de Big Little Lies com seu Emmy de Melhor Minissérie

Talvez por isso, em pleno 2017, a TV tenha passado por um de seus melhores, mais produtivos e mais densos anos da história. O modelo industrial da televisão parece ter se adaptado com maior facilidade à multidão de escolhas e opções que o público pode fazer, talvez porque ele tenha sempre sido um formato baseado nesse poder de decisão (afinal, o controle remoto sempre esteve com o espectador). Olhando para 2017, fica claro que o que o público pede para a TV é justamente o mais natural de pedir-se em um cenário de múltiplas opções: diversidade.

É só olhar para os maiores sucessos do ano: Big Little Lies discutiu relações abusivas e estupro com a história de três mulheres de classe alta dos subúrbios americanos; The Handmaid’s Tale resgatou um clássico feminista para expor detalhes de opressão em um futuro distópico nem tão afastado da nossa realidade; Stranger Things aprofundou seus temas de identidade queer e sua deliciosa nostalgia oitentista; Feud revelou a jornada de duas estrelas da era de ouro de Hollywood no mesmo ano em que as indignidades enfrentadas por mulheres na indústria foram parar no topo das manchetes; Master of None, The Night Of, Sense8, Black-ish e Cara Gente Branca representaram histórias de etnias, religiões e sexualidades divergentes do padrão branco-hétero-católico da ficção americana, criando heróis e heroínas diversos nos quais todo tipo de espectador pode se inspirar.

Em um ano no qual os “vazamentos” da cultura pop para o mainstream foram marcadamente através de notícias negativas, vale olhar para a TV que produzimos e elevamos ao sucesso como realizadores e espectadores. Ali, em cores vivas e iluminações diversas, está tanto uma lista completa do que precisamos discutir como sociedade quanto um retrato vibrante do que um dia podemos nos tornar – nossa realidade nunca vai ter um arco de personagem tão “redondinho” quando um roteiro bem escrito, mas no meio do nosso caos diário podemos encontrar personagens tão vívidos, e nos relacionarmos com eles de maneira tão profunda e empática, quanto fazemos na TV.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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