Não verei mais, nos próximos meses, os gordos rios obesos pelas últimas chuvas. Foram dias entre águas e sol quente a buscar para a vacina alguns adolescentes e muitas crianças para a imunização fundamental, o famoso cutuco, palavra que entre os indígenas desperta risos nos jovens e choro e desconsolo entre os pequenos.
O exercício do vacinar, entre os povos indígenas, é ofício belo tal engrenagem de relógio de cordas; tudo depende do fino ajuste da previsão e provisão. Enfim, a promoção da saúde e o amparo da doença e seus possíveis vieses entre corpo, alma, cultura e ciência. Isso é o mote de meu olhar entre brava equipe e a população valente que habita a Terra Indígena do Xingu. A época é de Murici e Cajá, frutas deliciosas e levemente azedas, de sútil sabor adocicado, fartando as aldeias durante todo nosso período de andanças.

Há novos hábitos importados de nossa sociedade capitalista, vejo bem, avançando em braços e córregos afluentes no vasto Xingu. Ao Norte, o dízimo evangélico permeia pequenas aldeias e outras tantas resistem às novas pregações. Sem condenar entristeço, minha revolta tímida não exclui meu respeito à liberdade de escolha dos indígenas que necessitam, por motivos variados, experimentar a fé de brancos e conselho de pastores. Sei que também, certo dia futuro, a desilusão lhes baterá na casa coberta de folhas de Inajá, e voltarão novamente a seus mitos, pois só a cultura salva.
O universo das águas e seus matos é algo pouco compreendido pela gente do asfalto e seus edifícios, mas coexistem apesar das secas e suas bolsas. Tantos valores fazem gente diversa nessa terra. Sim, Brasil vasto e susto, nem só de agro ou pato, muito além somos sapo, aranha e cobra. Anta, jacu, raposa e jacaré de tais e quais somos índio, árabe, preto e desbotados.
Intrigam-me sim os bancos de escola ou templo, tudo gente nossa e deles em si. Lá, nas florestas e breves campos, tantas línguas diversas e entendimento do mundo. Imunizar é um fato, vi bem, salvar e permanecer é o fórum em humanidade que se afirma, apenas confirmo.
Como um mar a temer ou lula em água doce, no Xingu também os antigos e fortes caciques estão a debater e entender o poder nos últimos dias do éden, pois tudo se afina e desconjura velhos romantismos ou indulgências. São tempos de internet e commodities, agrotóxicos e fóruns mundiais. O futuro transcende a pastores ou coordenadores.
Vacinar é grande atitude entre a vida que renova e persiste.
*imagens por Helio Carlos Mello-acervo Projeto Xingu/UNIFESP.