“São todas as nossas dores aqui listadas. São órgãos que nos maltratam, que nos massacram. Estou aqui para falar enquanto povo preto, que sustenta esse país que não nos respeita, que tira nosso direito à vida. Porque nossas águas, nossas matas, nossa terra, nos dão a vida. Se tiram isso, nos matam! Nos fazem morrer de banzo, nos fazem doentes, nos fazem sangrar todos os dias!”. A fala de Mãe Donana, liderança comunitária e espiritual do Quilombo Quingoma, em Lauro de Freitas, expressou uma dimensão mais profunda do sofrimento contido em centenas de depoimentos de quilombolas baianos ouvidos no auditório do Instituto Anísio Teixeira nos dias 8 e 9 deste mês.
Lideranças de todo o estado estiveram na Audiência Pública sobre a proteção e regularização de territórios quilombolas na Bahia, promovida pelo Ministério Público Federal. A manhã do dia 8 foi dedicada a cobranças e denúncias relativas à atuação do Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos (INEMA) e no dia 9 foi a vez do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e da Superintendência do Patrimônio da União (SPU) – responsável pelas áreas de marinha e margem de rios federais.
Os órgãos foram convocados pelo MPF a partir da escuta das comunidades. Elas apontaram dois vetores principais de ameaças a seus territórios e modo de vida: o não reconhecimento enquanto comunidade quilombola com a devida demarcação e regularização de seus territórios – responsabilidade do Incra e SPU. E a invasão de seus territórios por empreendimentos que degradam o ambiente e a saúde dos quilombolas. Estes em sua maioria têm licenciamento ambiental do Inema sem a devida consulta prévia das comunidades. Foram dezenas de relatos de comunidades expulsas judicialmente de seus territórios ou que tiveram poluídos ou totalmente erradicados os mangues e matas de onde coletam e cultivam recursos de subsistência.
Os procuradores do MPF Marília da Costa e Ramiro Rockenbach entregaram aos representantes do INEMA uma recomendação que pede a consulta prévia, livre e informada das comunidades quilombolas em todos os empreendimentos ou políticas públicas que interfiram em seus territórios – como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, assinada pelo Brasil. No encerramento do evento também comunicaram que pretendem pedir reunião com o governador Rui Costa para buscar o compromisso do estado na defesa dos territórios quilombolas.
O INCRA já havia recebido recomendação de revogação da portaria interministerial 111/2021 em todo o país. O MPF considera que a portaria sobrecarrega o instituto ao lhe atribuir papel importante em licenciamentos ambientais, já que ele não vem conseguindo cumprir nem sua principal tarefa, que é regularizar os quilombos. O órgão respondeu negativamente à recomendação. O teor da resposta foi enviado à Coordenação Nacional das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (CONAQ) para complementar a petição 9698, ingressada no Supremo Tribunal Federal. O ministro Edson Fachin decidiu favoravelmente à CONAQ e exigiu do Governo Federal a elaboração de um cronograma de titulação dos quilombos.
A ausência do superintendente do Incra na Bahia foi destacada pelos procuradores do MPF. Os quilombolas ocuparam o INCRA na terça-feira (7) e o superintendente substituto Lauriano Palma não recebeu a pauta de reivindicações do grupo com a justificativa de que não poderia negociar com o prédio ocupado. No entanto, ao invés de realizar a escuta das comunidades durante a audiência, a superintendência optou por enviar duas técnicas sem nenhum poder decisório. “Alguém que se dispõe a ser superintendente em um estado como a Bahia precisa entender que a sua maior tarefa é dar a maior atenção possível ao povo preto. É preciso que se entenda isso”, criticou o procurador Ramiro Rockenbach. Ele completa, informando que já tentou e não conseguiu se reunir com a chefia do órgão na Bahia.
Foram entregues também ofícios do MPF ao INCRA e SPU requisitando informações para mensurar quais recursos materiais e humanos faltam para que os processos em andamento sejam finalizados em um prazo razoável – 1 ano para SPU e 5 para o INCRA. Isso porque o INCRA vem alegando falta de recursos para dar andamento às regularizações. Segundo as servidoras presentes, até o momento ainda não foi liberado o orçamento para 2022 do instituto, impossibilitando as equipes de realizarem até mesmo visitas de campo. Segundo o procurador Rockenbach, no ritmo que está indo atualmente, seriam necessários mais de 100 anos para regularizar todas as comunidades baianas.
A Superintendência do Patrimônio da União foi o único órgão a ser representado pelo superintendente do estado e a trazer perspectiva de avanço na regularização dos territórios. Abelardo de Jesus Filho informou que será feita força tarefa de regularização e emissão de Termos de Autorização de Uso (TAUs) na Bahia em 2023.
Licenciamentos do Inema
Intervenção judicial, Comissão Parlamentar de Inquérito, investigação de irregularidades pelo MPF e até mesmo o fim do Inema. Esses foram alguns dos pedidos exaltados de representantes de comunidades quilombolas na quarta-feira (8), tamanha a insatisfação com a postura do órgão nos licenciamentos ambientais que interferem nos territórios.
O auditório lotado de quilombolas assistiu incrédulo o diretor de regulação do Inema, Leonardo Cruz, afirmar que a consulta especial, voltada para as comunidades tradicionais prevista na convenção 169, não está ainda regulamentada – motivo pelo qual o órgão estaria impossibilitado de executá-la.
Ananias Viana, do quilombo Caonge, em Cachoeira, argumentou em sua fala que as comunidades conhecem seus direitos e não acreditam na justificativa. “Infelizmente quando terminou a escravidão os nossos ancestrais foram deixados abandonados, sem saúde, educação, saneamento básico e sustentabilidade. Vários não foram para a escola, mas hoje é diferente. Dizer que a Convenção 169 não está regulamentada é menosprezar a consciência dessas pessoas. É importante que a gente não fale mais essas besteiras nas vistas das pessoas”, recomendou.
Isso porque, desde 2014, o procedimento de consulta prévia, livre e informada está regulamentado na legislação estadual. Ele é um dos componentes do Estatuto da Igualdade Racial que tem decreto regulamentador próprio. O representante do Inema não explicou se o órgão ignora a existência dos artigos 19 ao 34, do decreto n.º 15.671, de 19 de novembro de 2014, ou se não o considera uma regulamentação válida. Consultado posteriormente sobre a tese jurídica que embasa a afirmação, o Inema não respondeu. O Inema foi procurado pela reportagem no dia 8, com reforço da solicitação nos dias 9 e 10, mas até a publicação da notícia não enviou posição. Caso seja enviada, o texto será atualizado.
Ao mesmo tempo que alega falta de regramento legal, o INEMA cita uma condição para a consulta prévia nos licenciamentos que exclui a maior parte das comunidades presentes: ter o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) publicado. A regra, que não existe no decreto estadual, exclui a maioria dos quase 700 quilombos certificados pela Fundação Palmares no estado, já que seus processos de reconhecimento estão engavetados no Incra.
O procurador Ramiro Rockenbach finalizou reforçando que o “reconhecimento e demarcação dos territórios é tarefa do Estado. Portanto, o atraso nesses processos é algo que não pode vir ainda em mais prejuízo das comunidades quilombolas. Se o órgão responsável por fazer isso ser célere, não o faz, além da não regularização as comunidades terão ainda um outro prejuízo porque os empreendimentos e atividades seguirão avançando em seus territórios por conta de uma omissão sobre a qual ela não tem simplesmente responsabilidade alguma. A responsabilidade é deste país, é do Estado brasileiro. É uma dívida, desde os navios negreiros”.
Comunidades ocupam o INCRA
No dia 7 de junho pela manhã, um grupo de quilombolas de Salvador, Recôncavo e Baixo Sul baianos ocupou de forma pacífica a sede do Incra, no bairro de São Marcos, capital baiana. Eles protestaram contra a lentidão no reconhecimento e regularização dos territórios quilombolas por parte do Incra.
A Articulação Nacional de Quilombos (ANQ) informa que há processos de regularização das comunidades pendentes há mais de 15 anos no Incra. Também destaca que a situação foi agravada no Governo Bolsonaro, “quando não foi publicado mais nenhum Relatório Técnico de Identificação e Delimitação”.
Além disso, Termos de Autorização de Uso para áreas costeiras – responsabilidade da SPU – também têm sido engavetados por até 10 anos, prejudicando os direitos territoriais de comunidades pesqueiras como Cova de Onça, Ilha de Maré, Guaí, Porto da Pedra, Salaminas, Capanema, Garapuá, Aratu, Santiago do Iguape, Acupe de Santo Amaro e Cambuta.
Com a chegada dos quilombolas, o superintendente substituto do INCRA no estado, Lauriano Palma, ordenou o esvaziamento do prédio, dispensando os servidores. A atitude foi criticada pelos quilombolas que apontaram racismo. Segundo eles, alguns dos servidores que foram dispensados poderiam ajudar a esclarecer as demandas das comunidades.
Um pequeno grupo foi recebido na superintendência, mas não houve nenhuma negociação de pauta. O superintendente citou uma normativa institucional que ordena o esvaziamento do prédio e proíbe negociação em caso de ocupação. Ele também atribuiu a inoperância do órgão ao contingenciamento de seu orçamento.
A reportagem continuará acompanhando o caso.
Para assistir a Audiência Pública sobre a proteção e regularização de territórios quilombolas na Bahia acesse:
2 respostas
Ministério público olhei por nosso povo com atenção humanidade porque os políticos empresário que extermínio das comunidades quilombolas
Muito boa a matéria. A situação no Vale do Ribeira é a mesma. Imagino que no Brasil todo. Triste, mas esse povo não desiste e todos que concordam com suas reivindicações tem o dever moral de compartilhar