Questão de vida ou morte

Como a política econômica pode melhorar a vida da população, aumentar salários e empregos

por Paulo Nogueira Batista Júnior

Questão de vida ou morte para o governo Lula – mostrar, já em 2023 e 2024, que é capaz de melhorar a vida da população miserável e pobre e de aumentar os salários e o emprego. Por algum tempo, pode-se viver de promessas e discursos. Mas o período de carência não será longo. Logo virão as cobranças e, caso não atendidas, as decepções. Lula certamente sabe disso. E dá mostras de que tem pressa.

É possível fazer diferença já no curto prazo? Sim – ainda que exista um obstáculo poderoso: a autonomia ou independência do Banco Central (BC), cujo comando é exercido por um executivo financeiro indicado por Bolsonaro.

Distribuir renda e reativar a economia

Os instrumentos para distribuir renda e reativar a economia são conhecidos em suas linhas gerais. O próprio Presidente da República referiu-se a eles na campanha, depois de eleito e depois de empossado. Destaco três: a aumento do salário mínimo, a ampliação do bolsa família e a correção da tabela do imposto de renda, com o aumento da faixa de isenção.

Essas três providências matam dois coelhos com uma cajadada – desconcentram a renda nacional e, ao mesmo tempo, estimulam a economia. Ao aumentar a renda disponível dos mais pobres, diminuem a miséria, a fome e a pobreza, melhorando imediatamente a distribuição da renda nacional. Além disso, têm impacto expressivo sobre a atividade econômica e o emprego, uma vez que a propensão marginal a consumir dos mais pobres é elevada, próxima de 1. Admitindo-se que exista capacidade produtiva ociosa na economia, o multiplicador keynesiano associado a essas providências será alto. Sem jargão e em uma frase: como os pobres gastam toda ou quase toda a renda adicional que recebem, é grande o efeito dinamizador sobre a economia de medidas que aumentem a sua renda. 

Como fazer? O salário mínimo deve ser elevado paulatinamente, ano após ano, em termos reais, começando já em 2023. O bolsa família, que está sendo recuperado agora, inclusive o cadastro único, dos estragos cometidos durante o governo Bolsonaro, deve ser ampliado gradualmente, a partir de 2024. Isso poderia ser feito de várias maneiras: garantindo a inclusão de todos os que têm direito ao benefício, aumentando gradualmente o benefício médio em termos reais e ampliando aos poucos o alcance do programa pela elevação da faixa de corte.

O congelamento da tabela progressiva do imposto de renda pessoa física, que ficou sem correção por anos, criou distorções sérias. Com a inflação persistente, os salários foram migrando para faixas mais altas de tributação, mesmo sem aumentar em termos reais, até caindo em termos reais em alguns casos. Resulta que hoje o imposto de renda chega a incidir sobre salários muito baixos: as alíquotas marginais são de 7,5% e 15% para as faixas mais baixas de rendimento, até R$ 2.827 mensais. Cabe então começar a corrigir a tabela, elevando gradualmente a faixa de isenção e as demais faixas de tributação.

Um banqueiro central

Simples? Parece, mas não é. Vamos tentar resumir o contra-argumento de um banqueiro central. Exaltado dirá: “Mas essas medidas terão consequências macroeconômicas terríveis. Prejudicarão as contas públicas, aumentarão a inflação e desequilibrarão as contas externas do país!” Se for dado à hipocrisia, ainda acrescentará compungido: “E o pior é que no final das contas, o povo é que pagará, uma vez que a inflação prejudica sobretudo os mais pobres”. E correm as lágrimas de crocodilo.

Bem, pergunte, querido leitor, ao pobre, ao miserável que está na emergência e recebe o aumento do salário mínimo, que ganha com a ampliação do bolsa família ou que passa a pagar menos imposto de renda, pergunte por favor se ele perde o sono com o hipotético aumento da inflação e do imposto inflacionário que sobre ele incidirá. As lágrimas de crocodilo do banqueiro central não o comoverão.

Mas não quero fazer uma caricatura simplória do nosso respeitável BC. As suas preocupações são relevantes e merecem atenção. Não convém descartá-las sumariamente, como fazem os ortodoxos, dogmáticos que tendem a ser, com os argumentos dos seus adversários. São meias verdades. E a meia verdade, como escreveu Tennyson, é mais perigosa do que a mentira pura e simples.

Contas públicas e risco fiscal

Convém reconhecer, primeiramente, que as medidas acima referidas afetam as contas públicas primárias, por aumento de despesa ou perda de arrecadação, e podem dar margem a alertas sobre o “risco fiscal”. Deve-se avaliar com cuidado o impacto de cada medida no resultado primário do governo e, por extensão, no endividamento do setor público.

Não se pode, porém, perder de vista que as três providências se autofinanciam, pelo menos em parte, ao gerar expansão do PIB, das vendas e do emprego (isto é, das bases de arrecadação dos tributos) e reduzir certas despesas, como o seguro-desemprego. O grau de autofinanciamento estará na razão direta da ociosidade na economia, da propensão marginal a consumir dos mais pobres, do multiplicador keynesiano e da elasticidade da receita em relação ao PIB, entre outros fatores. Nada impede, além disso, que o impacto fiscal seja neutralizado por tributação dos super-ricos. Seria a reforma tributária Robin Hood, temida pelo empresário Abílio Diniz.

Mesmo que o autofinanciamento seja parcial e que não se mostre possível contrabalançar inteiramente o aumento de gastos e a perda de receita com impostos sobre os super-ricos, não será o fim do mundo. Um aumento do déficit primário e da dívida pública, desde que não explosivo, pode ser aceitável e não levará necessariamente à instabilidade da economia.

Excesso de demanda?

Haveria risco de excesso de demanda? Ponto óbvio que não pode ser esquecido: se não existir capacidade ociosa (desemprego da força de trabalho e das instalações produtivas) ou se ela for ocupada rapidamente, haverá, sim, excesso de demanda e pressão inflacionária. E, pior, as pressões inflacionárias, via pontos setoriais de estrangulamento, tenderiam a se manifestar antes do pleno emprego.

Essas pressões podem ser neutralizadas, pelo menos em parte, recorrendo a importações ou desviando exportações para o mercado interno? Sim, mas ao preço de deterioração das contas externas. De fato, como advertiu nosso banqueiro central, a expansão da demanda tende a resultar em aumentos das importações de bens e serviços e diminuição do excedente exportável, com impacto adverso sobre a balança comercial e o balanço de pagamentos em transações correntes.

Se o desequilíbrio em conta corrente ultrapassar certos limites, difíceis de precisar ex ante, o resultado pode ser um aumento perigoso da vulnerabilidade externa do País – tanto mais se o BC responder às medidas fiscais expansionistas com aumento da taxa de juro. A apreciação cambial induzida pelos juros reforçará o desequilíbrio externo. E os juros altos elevarão diretamente o custo da dívida pública interna.   

Vamos trazer para a nossa conversa uma outra voz: um heterodoxo, digamos um jovem economista que não tenha vivido e nem estudado o Plano Cruzado de 1986. Ele dirá, enfático, numa inversão da notória Lei de Say, estigmatizada por Keynes, que “a demanda cria a sua própria oferta”. Vale dizer: que a demanda agregada em expansão estimula uma reação da oferta agregada, isto é, da capacidade produtiva da economia. Como? Por exemplo: trabalhadores desalentados, fora da população economicamente ativa, serão induzidos a voltar ao mercado de trabalho. Os empresários, verificando que a capacidade ociosa das suas instalações está diminuindo e (qualificação importante) tiverem confiança de que não se trata de um surto insustentável de vendas, responderão aumentando os turnos de trabalho, contratando novos empregados e fazendo pequenos investimentos e adaptações marginais nas suas linhas de produção. Num segundo momento, farão investimentos novos, abrindo novas fábricas ou aumentando a produção das fábricas existentes, incorporando novos métodos e novas tecnologias de produção. Assim, não haveria, em tese, porque se preocupar com a expansão da demanda.

Não está errado o que diz o nosso jovem heterodoxo. Só um problema, e não é pequeno: é provável que a expansão da demanda agregada seja mais rápida do que a expansão da oferta agregada induzida por ela. Passada a fase de adaptações marginais, a expansão da oferta via investimentos novos é mais demorada, ou seja, a oferta agregada se torna inelástica no curto prazo. Persiste, portanto, o risco apontado pelo nosso banqueiro central.

Mitigação de riscos

O que fazer para mitigar esses riscos? Duas coisas, pelo menos. Primeira: fazer tudo passo a passo, testando a temperatura da água: aumento gradual do mínimo, expansão em etapas do bolsa família e correção em etapas da tabela do imposto de renda. O gradualismo permite ir avaliando os efeitos das medidas de distribuição de renda e reativação da economia sobre a demanda, a inflação, as contas externas e as contas públicas.

Mas, atenção, tem que ser um “gradualismo chocante”, como ironizou Mario Henrique Simonsen em outro contexto, ao defender o gradualismo por oposição ao tratamento de choque no combate à inflação nos anos 1970. Gradualismo chocante, e não a passo de cágado.

Segunda coisa: acompanhar com o máximo de cuidado, semanalmente se possível, todo um amplo conjunto de indicadores, inclusive antecedentes, sobre a conjuntura econômica interna e externa (produção, vendas, capacidade ociosa na indústria, estimativas de produto potencial, mercado de trabalho, emprego, desemprego, rendimentos do trabalho, indicadores de investimento, indicadores de confiança, resultado das contas públicas, medidas diversas de inflação, inclusive tendenciais, evolução da balança comercial, das contas externas correntes e das reservas internacionais, comportamento e perspectivas da economia internacional e assim por diante). Repare, leitor, que não se trata de seguir modelos ou regras simples, mas de avaliar com discernimento e espírito crítico uma grande variedade de informações sobre o estado da economia.

O BC e a Fazenda já fazem esse acompanhamento da conjuntura. Convém aperfeiçoá-lo e – ponto importante – discutir em conjunto as avaliações dos dois órgãos, confrontando informações e coordenando as ações do BC e da Fazenda.

E que não se venha, por favor, com essa conversa de BC autônomo ou independente. Em todos os países que se prezam, o BC coordena suas ações com as do Tesouro. Banqueiros centrais que não entendem isso são gentilmente convidados, cedo ou tarde, a pedir as contas. 

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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital”.

O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguémbastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.

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