Sempre fui e continuarei sendo a favor das cotas raciais, tanto nas universidades, como nos cargos públicos. Para quem está atenta a este debate, pode parecer até lugar comum dizer que as cotas fazem parte de políticas de ação afirmativa que significam uma reparação histórica às negras e negros, cujos ancestrais construíram este país e que, após a abolição, foram deixados à margem da sociedade e sobreviveram a um projeto higienista do estado de embranquecer a população. Porém, a verdade histórica é essa mesma!
Resistiram como puderam. Criaram mecanismos de sobrevivência. Construíram maneiras de manter sua existência. E cá estamos nós em 2016.
No país da meritocracia, onde o tal do “esforço” é celebrado, em detrimento de oportunidades iguais e democráticas para todas e todos, independentemente de sua raça, origem social ou gênero/sexualidade, defender as cotas é algo cercado de polêmicas tanto em setores progressistas como os conservadores.
Seja como for, as cotas existem, foram conquistadas com muita luta e articulação dos movimentos negros e, agora, no atual contexto político em que vivemos, onde a máscara de muita gente está caindo, estão sendo alvo de tentativas de desmoralização e questionamento, uma espécie de plano para firmar a visão de que as cotas não são necessárias no país, onde basta se esforçar para conseguir “subir na vida”.
As cotas dependem da autodeclaração de candidatas e candidatos, ou seja, a pessoa se assume como negra e concorre às vagas destinadas a esta população. Ocorre que esta maneira dá margem ao surgimento dos afroconvenientes, pessoas não-negras, pessoas brancas, que de forma oportunista (os chamados caras-de-pau) se declaram negras para conseguir o trabalho ou uma vaga na universidade. Usam os argumentos de que “meu avô é negro”, sou “branco de alma negra” e outras balelas para justificar a adoção da identidade negra, apenas neste momento. Claro que estas pessoas não são perseguidas pela polícia, não tiveram parentes ou amigos próximos assassinados, não são seguidas nos supermercados ou tratadas com aridez e agressividade em lojas, restaurantes ou serviços públicos de saúde e educação. Com certeza elas também não assistem ao crescimento vertiginoso de morte de mulheres do seu grupo, entre outras problemáticas.
Com o argumento de evitar tais fraudes no sistema de cotas, a Secretaria de Planejamento do Governo Temer anunciou a criação de uma Comissão para verificar a autenticidade da autodeclaração para cotistas. Uma espécie de Tribunal da Raça, onde uma outra pessoa (provavelmente branca), vai decidir quem é negro ou não, usando critérios que não se sabe ao certo quais serão. Ora, uma pessoa decidindo se eu sou negra ou não? A hipocrisia brasileira quando se trata de racismo beira o inacreditável.
É preciso dizer que, infelizmente, vivemos em um país onde fraudes em sistemas de políticas públicas são constantes. Tem sempre alguém querendo trilhar o caminho mais fácil e garantir o seu. É fato. No sistema de cotas, não seria diferente. Claro que é necessário pensar em formas de garantir que as cotas sejam destinadas única e exclusivamente para pessoas negras, incluindo aí a diversidade da população negra no país.
E é aí que chego ao ponto que queria: quem é negro neste país?
Houve um aumento considerável de pessoas que se autodeclaram descendentes de africanas e africanos na última década. De acordo com a PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) realizada em 2014 pelo IBGE, 53% da população brasileira se diz negra. Em 2004 este número era de 47,9%. O crescimento deste reconhecimento tem suas raízes nos avanços que tivemos nos últimos anos, como o acesso à educação superior e às ações de movimentos e coletivos culturais e artísticos (grande parte localizado nas periferias do país, onde somos maioria) e sociais que valorizam a cultura negra, lutam por ações afirmativas e constroem outras narrativas para a população negra, para além da dor e sofrimento da escravidão. O resultado disso tudo estamos começando a colher e muito mais está por vir. Vide o fortalecimento da autoestima de jovens e crianças negras, principalmente mulheres.
Ainda há muito o que conquistar e avançar. O genocídio da juventude negra, os números de evasão escolar de jovens negras e negros no ensino médio, o aumento do número de mortes de mulheres negras não permitem que nos desmobilizemos um dia sequer. Mas é preciso reconhecer que a valorização da identidade negra fez com que muitas pessoas se assumissem negras. Esta jornalista que vos escreve, por exemplo, saiu do armário com sua negritude através de descobertas e reflexões de quando entrou na universidade. Vale dizer que assumir minha identidade fez com que eu entendesse muitos dos “problemas do destino e dos desígnios de Deus” que aconteceram comigo e, principalmente, com as mulheres da minha família.
Por tudo isso, a autodeclaração, ainda que existam eventuais deficiências, é a melhor forma de se comprovar a negritude de uma pessoa. É ela que tem de se reconhecer como tal. É um processo dela e não de uma outra pessoa. Mas caras-de-pau, por favor, nos dêem um tempo! O vil oportunismo de pessoas brancas não pode inviabilizar o sistema de cotas, tampouco exigir que haja um Tribunal da Raça.
Vamos supor que este tribunal queira “descobrir” quem é afrodescendente no Brasil. Basta perguntar para os órgãos opressores do Estado, como a Polícia Militar, que sabe muito bem quem é negro e quem não é. No Brasil, ser negro, passa, necessariamente pela aparência, pela cor da pele, pelo tipo de cabelo, pelos traços físicos, pela fenotipia. É ela que determina ser negro. E quanto maior a quantidade de melanina, maior será a discriminação sofrida.
Os casos de fraude precisam ser apurados e os culpados, punidos. Mas a política de ação afirmativa ser questionada a partir disso é mais uma manifestação do racismo enraizado nas instituições do país. Ser negra no Brasil passa sim pela fenotipia que é o que determina a discriminação. Não basta ter um avó, uma mãe preta. Pessoas negras têm avós, pais, brancos, mas se o tom da pele for escuro, ela nunca será considerada branca.
O argumento de que ser negro passa também por um “viver negro”, uma identificação com as questões e dificuldades sociais deste grupo é incipiente, raso e terreno fértil para os afro-oportunistas que estão espalhados aos montes pelo país. Acreditar e espalhar esta afirmação dá margem para aquelas campanhas horrososas de “Somos todos Humanos”, “Somos todos Iguais”. Não, não somos. A opressão precisa ser escancarada e chamada pelo nome : Racismo!
A apropriação cultural da cultura negra é outra vertente desta “igualdade”. Afinal, todos os amantes e admiradores da arte e da cultura negra estão onde quando acontece uma mobilização como a Marcha das Mulheres Negras ou A Paixão de Cláudia, que prestou uma homenagem/manifestação à Claudia Ferreira da Silva, morta por policiais no Rio de Janeiro?
Por tudo isso, a defesa das cotas e sua ampliação para universidades públicas de ponta deve ser feita exaustivamente e por todas as pessoas: brancas e negras. A cada ano, muitas das nossas ocupam as universidades e colocam o conhecimento a serviço da luta contra o racismo, mas esta ocupação precisa ganhar corpo em espaços como a USP, Unicamp, UNESP. Defender o acesso da população negra às universidades e espaços de poder e lutar por representatividade é defender um Brasil justo e democrático. O combate ao racismo precisa permear as articulações sociais no país, pois é a luta pela democracia.
Um ditado dos dias de hoje afirma que a Casa Grande surta quanto a Senzala chega à universidade. E surta mesmo! A questão é: o que fazer com este surto? Aceitá-lo como normal e perpetuar o racismo ou problematizá-lo e enfrentar este mal que estava tão bem guardado que a própria pessoa nem tinha se dado conta dele? Espero que a maioria opte pela segunda opção. Assim enfrentaremos a questão racial de forma verdadeira no Brasil, sem hipocrisias. Que isso não seja uma utopia.
*Christiane Gomes, 38 anos, é jornalista, mestra em Comunicação e Cultura pela USP e pesquisadora das danças da diáspora negra.
Foto MídiaNINJA