Assédio judicial, linchamento moral e perseguição. Criado para ecoar vozes antirracistas e ressoar a essência cultural do povo preto, o primeiro grêmio recreativo digital do Samba Abstrato há nove anos sofre ataques e perseguições pela denúncia do embranquecimento e esvaziamento do significado das escolas de samba.
A voz antiracista do carnaval
Musas abstratas, biscoiteiros, vilões carnavalescos, franja do migué e abstração de três segundos, são termos bem conhecidos pelos Membros da Comunidade do Samba Abstrato, e todo o universo fantástico da Abstratolândia.
Criado em 2016 por um coletivo de apaixonados pelo carnaval de escola de samba, o Grêmio Recreativo Digital do Samba Abstrato, é uma página, atualmente no Facebook, que cobre o carnaval com muito humor, deboche e conscientização.
Conhecido pela Comunidade fervorosa e os textos cheios de conteúdo e alta intelectualidade preta, o Samba Abstrato é a primeira agremiação carnavalesca virtual que faz uso das plataformas digitais para trazer o debate sobre apropriação cultural e embranquecimento do carnaval das escolas de samba.
O foco principal são as musas abstratas, mulheres em sua maioria brancas e famosas, alheias ao carnaval, que compram seu postos de destaque com generosas somas de dinheiro ou são supostamente convidadas pelas diretorias com o objetivo de trazer visibilidade às escolas, apagando e excluindo as verdadeiras passistas e sambistas das agremiações.
Educação decolonizadora
O Samba Abstrato vai ainda mais fundo quando debate privilégios sociais de pessoas brancas em ambientes de cultura preta ancestral como escolas de samba, casas de umbanda, terreiros de candomblé e traz à tona a substituição dos participantes originais por pessoas que sequer tem habilidades necessárias para ocuparem os postos que ocupam deturpando a essência ancestral destes territórios.
O embranquecimento de culturas pretas é um fenômeno complexo que se manifesta em diversas esferas sociais e culturais, e no carnaval não seria diferente. Esse processo envolve a apropriação e adaptação de elementos culturais afrodescendentes por grupos dominantes, muitas vezes resultando na diluição ou deturpação dessas expressões originais.
Aspectos fundamentais destas culturas pretas são assimilados de maneira superficial, muitas vezes despojados de seu contexto histórico e significado original. Esse fenômeno não apenas esvazia o significado e a diversidade das tradições pretas, como é o carnaval de escola de samba, mas também perpetua desigualdades ao negar o devido crédito e reconhecimento às comunidades que contribuíram significativamente para a existência dessas expressões culturais.
A violência do biscoiteiro abstrato
Criado para ecoar vozes antirracistas e ressoar a essência cultural do povo preto, o Samba Abstrato vem sofrendo ataques pela denúncia do embranquecimento e esvaziamento do significado das escolas de samba.
No final do ano passado, Dam Menezes, “influenciador do carnaval”, orquestrou o ataque à página com intuito de derrubá-la. Não apenas tirou a página do Instagram do ar como também divulgou publicamente dados pessoais e até o endereço de uma componente da Diretoria do Samba Abstrato com intuito de incitar as pessoas a fazerem justiça com as próprias mãos. Tudo isso porque a página, com humor e deboche, analisa a performance de samba inexistente das musas. Veja, aqui a Página que o grupo perdeu o acesso.
O influenciador é conhecido no meio do carnaval pelas proximidade com as musas abstratas e seus posicionamentos contraditórios. Ao mesmo tempo que distorce a motivação da página alegando se tratar de “racismo reverso” contra as mulheres brancas destaque do carnaval, o influenciador apoia manifestações extremamente problemáticas, como quando uma musa, para “homenagear” mulheres pretas, foi fantasiada com uma máscara de Flanders para o ensaio técnico de uma escola e teve o apoio do influecer. A máscara de Flanders é um artefao de tortura usado para calar mulheres pretas durante a escravidão.
Biscoiteiros, como são chamados os haters do Samba Abstrato e defensores das musas, deturpam o discurso das página, algo comum quando se busca calar a voz de pessoas pretas.
Racismo algoritmico
Estes ataques revelam um padrão nefasto de apagamento de vozes pretas e destruição da identidade cultural, assim como demonstra o padrão de Instagram de calar de derrubar páginas de conteúdo e criadores pretos.
Em 2019, funcionários do Meta realizaram um estudo que mostrava que páginas admistradas por pessoas pretas tem mais de 50% a mais de chance de serem derrubadas, assim como criadores de conteúdo preto são os que mais sofrem as práticas de shadowban, quando a página é impedida pelo algoritmo de viralizar.
E com o Samba Abstrato não foi diferente. O Meta, que custa a retirar páginas de fakenews e que cometem crimes na rede, em nome da uma suposta liberdade de expressão, rapidamente excluiu a página do Instagram após denúncias infundadas.
O chicote do Poder Judiciário
Esse tipo de ataque não é um incidente isolado, mas um reflexo de um padrão sistemático de silenciamento de vozes negras sempre que buscam se manifestar e reivindicar seu espaço de expressão. Assim como o assédio judicial que ronda a Diretoria da página.
Em 2020 a página sofreu seu primeiro processo judicial de uma musa abstrata que foi postada na página por fazer blackface e se caracterizar como mulher preta, prática bastante comum destas mulheres que escurecem a pele e encrespam o cabelo para o carnaval, para na quarta-feira de cinza voltarem a serem mulheres brancas com seus privilégios.
A decisão foi favorável à página, o juizo de um dos foros da capital considerou legitima a crítica e garantiu a liberdade de expressão e de defesa da cultura das escolas de samba.
Este ano com o aumento do número de seguidores no Facebook e a expansão da cultura da página, além das ameaças de praxe, a Diretoria foi informada de um processo judicial em andamento, mas que ainda não houve a citação para resposta e uma notificação extrajudicial para retirada de conteúdo da página.
O paradoxo é que o conteúdo compartilhado pela página é público e republicado por diversas páginas, mas as musas se posicionam apenas contra o Samba Abstrato, a despeito dos comentários meramente depreciativos que sofrem em outras publicações.
A lei, justiça e cultura
O racismo persiste, e o carnaval não é uma exceção. A missão da página desde sua concepção é usar o palco do carnaval não apenas como uma festa, mas como um espaço de conscientização. Históricamente o povo preto sempre utilizou o carnaval como um momento crucial para destacar questões tão urgentes quanto necessárias além de criticar desigualdades.
A tentativa de apagamento da página Samba Abstrato é um lembrete doloroso de que ainda há um longo caminho a percorrer na luta contra o racismo estrutural. No entanto, também serve como um chamado à ação a pessoas antirracistas a fortalecerem as expressões e instituições pretas contra a vulnerabilidade e a violência simbólica.
O que acontece com o Samba Abstrato hoje, a pouco tempo aconteceu com o samba que era criminalizado e muitos morreram e foram presos por sambar. As escolas de samba tem um histórico de luta e resistência, assim como outras manifestações pretas que foram no início marginalizadas e que agora são aceitas na cultura popular.
Um exemplo recente de apropriação cultural é o break dance, um dos elementos da cultura hip hop, e que era criminalizado e agora é um esporte olímpico. Mas quem colherá os frutos, serão as pessoas pretas originais desta expressão não apenas artistica mas de sobrevivência ou pessoas com privilégios socias que ignoram e apagam suas origens?
Desafios e reflexões sobre o racismo estrutural
A saga do Samba Abstrato reflete um padrão sistêmico de silenciamento de vozes negras, não apenas nas redes sociais, mas também no sistema judiciário. O apagamento da página serve como lembrete da persistência do racismo estrutural no Carnaval e destaca a necessidade contínua de conscientização.
O Samba Abstrato continua sua missão de usar o palco do Carnaval como espaço de crítica e conscientização, enfrentando resistência e desafios, mas mantendo-se como uma voz vital na luta contra o racismo.
Leia mais: Quem é o Samba Abstrato? Saiba antes que desapareça!https://vejario.abril.com.br/cidade/rainhas-de-baterias-que-nao-sambam
https://mundonegro.inf.br/o-samba-abstrato-das-mulheres-brancas-no-carnaval-2022/