Quem dera o Brasil fosse a Venezuela. Como está a pandemia nos dois países?

Brasileiros que entram no país vizinho são monitorados de perto por causa da “cepa Bolsonaro”
Protocolo de conferência de PCR Negativo e higienização de malas e do corpo para entrar em aeroporto de Caracas, na Venezuela.
Protocolo de conferência de PCR Negativo e higienização de malas e do corpo para entrar em aeroporto de Caracas, na Venezuela.

Não é preciso caminhar muito por Caracas, na Venezuela, para encontrar instruções como essas: “Medidas preventivas para evitar a Covid-19/Coronavírus. Evite contato com pessoas que estejam gripadas; Lave as mãos frequentemente; Para tossir ou espirrar, cubra a boca com panos descartáveis e os dispense em seguida; Mantenha as casas ventiladas; Limpe objetos de uso frequente como interruptores de luz, maçanetas, portas e telefones”

Por Juliana Medeiros e Martha Raquel

Instrução em muro da comunidade La Piedrita, no bairro 23 de Enero, próximo ao Quartel da Montanha (mais conhecido como 4F), em Caracas.
Instrução em muro da comunidade La Piedrita, no bairro 23 de Enero, próximo ao Quartel da Montanha (mais conhecido como 4F), em Caracas.

Esses são alguns dos hábitos adotados pelos venezuelanos além de, claro, usar máscaras em todos os ambientes exteriores, carregar álcool em gel, limpar os sapatos quando entrar em casa/lojas/mercados e de manter o distanciamento social. 

Nas ruas é possível sentir o compromisso do povo venezuelano com as medidas de biossegurança. Não é possível estar, ainda que por minutos, sem máscara ou mesmo com máscaras mal colocadas no rosto, sem ser abordado por alguém pedindo para ajustar o acessório corretamente. 

O uso de máscara é obrigatório em todos os lugares, dentro e fora dos estabelecimentos

Vendedores em estabelecimentos comerciais sempre oferecem spray de álcool e medem sua temperatura antes de saber o que o visitante procura no local. E não é incomum que venezuelanos abordem brasileiros com perguntas sobre a situação sanitária caótica que vivemos.

O país embargado, que sofre com bloqueios e sanções inclusive durante a pandemia, dá exemplo já na chegada ao território venezuelano. Todos os passageiros são desinfectados em uma cabine e depois passam obrigatoriamente por teste PCR, ainda no aeroporto. 

Na verdade, antes ainda de embarcar no Brasil, é preciso preencher um formulário online, o “pase de salud”, com informações sobre seu período de estadia na Venezuela e detalhes, desde a poltrona ocupada no avião até endereços em todas as cidades por onde pretende passar no território caribenho. É por esse documento que as autoridades podem localizar o viajante e comunicar qualquer problema em relação ao contato com possíveis contaminados no trajeto.

Cabine de desinfecção em aeroporto de Caracas, na Venezuela
Cabine de desinfecção em aeroporto de Caracas, na Venezuela

Se confirmada a infecção, três hotéis (em Caracas), totalmente custeados pelo governo de Nicolás Maduro, estão disponíveis para isolar e tratar os casos positivos. 

Importante acentuar que jornalistas trabalhando em território venezuelano são levados para testes de Covid cada vez que precisam estar em eventos presenciais, o que pode ocorrer a cada dois dias ou até todos os dias. 

Para cada evento, um teste de Covid, para garantir que não ocorra disseminação do vírus. E, sim, brasileiros são especialmente monitorados, já que podem carregar a chamada “cepa Bolsonaro”, como Maduro chama a variante que vem ameaçando a fronteira venezuelana.

A Venezuela foi a responsável por salvar milhares de vidas no estado do Amazonas, em janeiro de 2021. Logo nos primeiros dias do ano, o governo federal de Jair Bolsonaro foi avisado que faltaria oxigênio no estado da região Norte, mas o Ministério da Saúde ignorou as notificações. 

A Venezuela de Nicolás Maduro doou, então, sistematicamente durante semanas, caminhões de oxigênio para o estado brasileiro. Mesmo com a solidariedade do país vizinho, o Brasil registrou 29,5 mil mortes por Covid-19 somente em janeiro desde ano. 

Trabalhadores da Siderúrgica do Orinoco Alfredo Maneiro, principal produtora de aço venezuelana, estão a todo vapor trabalhando na produção de oxigênio, nitrogênio e argônio durante a pandemia para abastecer os hospitais de campanha venezuelanos. Agora, parte desta produção tem sido enviada ao Brasil para salvar vidas em Manaus. 

“Como classe trabalhadora temos o orgulho de saber que, com o fruto do nosso esforço, vamos contribuir para salvar vidas dos irmãos que apresentam Covid-19 em Manaus, como parte dos acordos de Diplomacia da Paz dirigidos pelo presidente Nicolás Maduro”.

Meses depois, em março de 2021, o estado do Amapá enfrentou uma situação parecida de colapso do sistema de saúde e falta de oxigênio. Novamente o país venezuelano se colocou à disposição para enviar caminhões com a doação de oxigênio, mas o governador do estado, Waldez Góes, sequer respondeu ao ofício, deixando a população à mercê do descaso público brasileiro. 

Ainda em março, a Venezuela reforçou um pedido feito à Organização das Nações Unidas (ONU) para que o órgão intercedesse junto ao Brasil a fim de conter a crise sanitária. 

Em carta destinada ao secretário-geral da ONU, Antonio Guterres, o chanceler Jorge Arreaza falou em uma “situação perigosa que ameaça toda nossa América do Sul” causada pelo avanço da covid-19 no Brasil que, segundo ele, é “consequência da negligência reiterada e criminosa” do presidente Jair Bolsonaro. 

Além disso, o país mantém um esquema de flexibilização e radicalização da “quarentena solidária e voluntária”. Desde junho do ano passado, o país adota o esquema 7+7, uma semana de confinamento total e uma semana de flexibilização, que permite o funcionamento de comércios, academias e restaurantes.

Venezuela deu resposta na hora certa

No dia 17 de março de 2020 foi registrada a primeira morte por coronavírus na Venezuela. Mas antes mesmo do primeiro óbito, no início da segunda quinzena de março do ano passado, Nicolás Maduro, presidente da Venezuela, investiu numa série de políticas públicas para a contenção do contágio do coronavírus e agora colhe um baixo número de casos fatais do vírus.

Pelo menos 20.000 médicos, entre venezuelanos e cubanos, além de estudantes brasileiros de medicina no país, foram chamados para realizar visitas ‘casa por casa’ para testar a população. Testagem em massa, todo o mundo sabe, é a chave para conhecer, rastrear, conter e vencer o vírus. Para iniciar o processo de testagem, foram recebidos 2 milhões de testes rápidos vindos da China.

Para efeito de comparação, logo nas duas primeiras semanas de pandemia, enquanto o Brasil havia realizado apenas 1.597 testes por milhão de habitantes – uma vergonha internacional, a empobrecida Venezuela, vítima de um bloqueio econômico criminoso orquestrado pelos Estados Unidos, havia realizado 16.132 testes por milhão de habitantes. Dez vezes mais do que o Brasil.

Para que a população não sofresse com o impacto econômico, o governo venezuelano determinou uma série de medidas para garantir renda mínima a toda a população: 

1. Nenhum trabalhador pode ser demitido até dia 31 de dezembro;

2. O Estado venezuelano pagou os salários dos trabalhadores das empresas privadas por seis meses para eles ficarem em casa;

3. Ficou proibido cobrar aluguel por seis meses;

4. Ficou proibido cobrar prestações e juros de todos os financiamentos em curso por seis meses;

5. Ficou suspensa a cobrança das taxas de serviços de energia, água e gás;

6. Sete milhões de famílias seguiram recebendo uma cesta básica de alimentos a cada 15 dias até que a pandemia e o estado de emergência sejam encerrados.

Recentemente, no mês de junho, o Escritório de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA publicou uma suspensão das penalidades contra empresas que realizam transações com o estado venezuelano, mas somente quando relacionadas ao combate à pandemia. 

O documento libera, por exemplo, o Banco Central da Venezuela e outras entidades estatais a realizar operações com empresas estadunidenses para aquisição de insumos hospitalares.

A medida foi anunciada pouco depois da intensa e negativa repercussão internacional do bloqueio dos valores que a Venezuela destinou para adquirir vacinas do consórcio Covax. 

O presidente Nicolás Maduro anunciou essa semana que vai pedir a devolução dos valores, além de ter condenado a ação de bloqueio que impede o povo venezuelano de ter acesso às vacinas do programa criado pela OMS destinado a países em desenvolvimento.

Apesar das sanções que o país enfrenta, cerca de 11% da população venezuelana já foi vacinada, com doses compradas da Rússia e doações da China. A meta, segundo Nicolás Maduro, é que até outubro 70% do país esteja vacinado contra a covid-19.

Desde o início da pandemia, não só o presidente venezuelano, mas quase todas as autoridades do país, ocupam seus perfis em redes sociais para divulgar os números e lamentar cada novo caso ou falecimento. O Brasil, como sabemos, teve sua primeira morte no dia 23 de março e Jair Bolsonaro não soltou uma única frase sobre. Ao contrário, tem ocupado seu tempo de comentários sobre a pandemia para piadas de mau gosto.

Quinhentos e trinta mil mortos 

Retrato do Brasil na Pandemia: aglomeração na porta do Maracanã antes de Brasil x Argentina na final da Copa América 2021 – Foto: Reuters

O choque é grande para qualquer visitante, mas para os brasileiros, em especial. Nós, que vivemos a realidade de um governo genocida, que barganha nossa vida por um dólar, nos surpreendemos ao ter uma palhinha sobre como é viver em um país em que a preocupação do governo é salvar vidas. 

Nos acostumamos a perder, tias, primos, amigos, professoras, mãe, pai, avós. A morte foi banalizada e normalizada. Todos os dias mais de duas mil famílias choram seus mortos sem poder, sequer, se despedir. 

O aperto no peito vem quando percebemos tudo que poderíamos ser e não somos. A Venezuela registrou até o momento 3.290 mortes por Covid-19 em mais de um ano de pandemia, enquanto o Brasil registra uma quantidade parecida por dia – tendo pico de 4.249 mortes em 08 de abril de 2021. Até o momento 533.488 pessoas já morreram pelo vírus no Brasil.

Quem dera tivéssemos virado a Venezuela e registrado poucas mortes, tivéssemos tido garantia de salários, isenção de contas básicas e de aluguel, além de equipes treinadas para testar a população em massa. Que dera. Quem dera hoje vivêssemos em um país comprometido com a contenção do vírus e com a vacinação. Quem dera. 

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