Não há zona de conforto ao homem que guia a proa ou provém remo e leme. Ser remador, barqueiro ou piloto exige pleno aprumo, coluna sã e coração limpo. Só quem perdeu-se em caatingas e sabe de sertões e das imensidões fluviais e suas ciências, entende o lamento das águas e sua fuga. Saber de água carece de ausências e seus ossos. Saber furar cacimba ou render peixe para alimento é fino conhecimento, e quem sabe não fere. É o mercado e sua gana que zomba e dizima afluentes e seus domínios.
Se acaso a água envolve o humano da concepção ao parto, das águas não nos apartamos durante toda a existência. Nossa sede é contínua, nossa via é salgada, puro suor onde os pecados secam as minas, seus olhos d‘agua.
O homem agora condena-se à sede e busca água em Marte. A água e seus conflitos são hordas recentes no país do hidrogênio e oxigênio, tudo que era azul aspira ao caos em Pindorama.
A árvore, os matos, os campos? Não há espaço para filosofia em assuntos assim; não é questão de prantos, mas nuvens. Florestas, terra preta e vermelha, raízes grossas no chão sobre ouro e diamantes, petróleo e esmeraldas. Querem abrir o tesouro escondido às empresas do mundo. Os olhos brilham e os sorrisos vão largos.
Em certo certo poema, Manoel de Barros, O GUARDADOR DE ÁGUAS, finalizou dizendo:
– As palavras invadem esse ermo como ervas. Todas as coisas passam a ter desígnios. Não há o que lhes ande por documentos. Enxergam borboletas apertando rio. Escutam o luar comendo árvores. Trazem no centro da boca pequenas canaletas por onde lhes correm o lanho e o lodo. O chão dá encosto para suas latas, seus trevos, seus apetrechos. Arrastam no crepúsculo andrajos e moscas.Criam peixes nos bolsos. Há cogumelos paridos em seus ressaios. E vozes de rios e rãs em suas bocas. Águas manuseiam seus azuis. E, viver roça no corpo deles.
– E as palavras, têm vida.
– Palavras para eles tem carne aflição pentelhos – e a cor do êxtase.
Às águas cabem a poucos o respeito devido e primário, mas em fóruns mundiais insistem contra a indústria que suja e o grande monstro das mineradoras, um tatu gigante a comer o que sob a terra habita. Somos sim um país de águas, tudo escandaliza antigos reinados de leitos e margens. Há uma depressão a invadir o fulgor dos grandes rios, há histeria entre os peixes, aguapés e tuiuiús. Lago, lagoa e represas já não se animam tanto para as festas, os recreios ou pescarias.
A água não estará mais ao encontro das bocas, nem aos pés darão o frescor no próximo século. Somos um terceiro ralo, draga sobre a terceira margem.
“Mas, então, ao menos, que, no artigo da morte, peguem em mim, e me depositem também numa canoinha de nada, nessa água que não pára, de longas beiras: e, eu, rio abaixo, rio a fora, rio a dentro — o rio.” – Guimarães Rosa.
*Imagens por Helio Carlos Mello©