Quando o ponto de ônibus se torna um ponto de interrogação

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Tem coisas que só a gente entende. Tem habilidades que somente nós desenvolvemos. A gente meio que pressente como será o dia logo em sua primeira ou segunda hora. Não que isso seja exclusivo nosso, é que se faz mais presente na nossa gente. Não sei pra você, mas o CEP da minha rua parece falar mais alto que o meu CPF. E isso dói.

Dói saber que preciso ser amigo da sorte, já que dependo diariamente dela. Como um retrato cada vez mais frequente da juventude periférica, que precisa dividir seu tempo entre os estudos e o trabalho, minha rotina é sempre uma incógnita, não importa o quanto me organize. E, pior de tudo, é perceber que essas incertezas já começam na porta de casa. E para que você possa entender minha angústia, te convido a pagar R$8,60 (passagem ida e volta) e me acompanhar durante o dia de hoje.

São 6h da manhã. Nesse horário, o ponto de ônibus se torna um ponto de interrogação. Será que o ônibus ainda demora? Será que conseguiremos entrar? Ou melhor, será que o ônibus ao menos irá parar? Me perdoe a indelicadeza, é que, minha nossa, já fazem 20 minutos que estou aqui e nada! Dois ônibus extremamente lotados vieram e o motorista passou direto. Poderia ao menos ter feito como o motorista de ontem e ter nos deixado entrar pela porta dos fundos. Ao chegar no terminal, pagaríamos a passagem.(

Então eu olho para o lado, vejo as horas, percebo um burburinho e já conto umas dez pessoas no ponto. Uma delas é a Dona Sônia, que tenta convencer um grupo de passageiros a rachar um Uber até o centro. Eu agradeço, já que recebo vale transporte, não compensa gastar com o aplicativo. Mas eu a entendo, as horas avançam rapidamente e, na incerteza de conseguir entrar no próximo ônibus, ela tem medo de se atrasar para o trabalho.

É que antes de sair de casa, Dona Sônia disse que viu na TV os dados da última pesquisa do IBGE, aumentando 1 milhão e 200 mil o número de desempregados em relação ao primeiro trimestre do ano passado. E aí, já sabe, é preciso andar na linha e não dar motivos para o chefe reclamar. Acontece que o problema está justamente aí. Na linha que ela precisa andar, Canaã-Centro, que é só mais uma dentre as cerca de 130 em operação em Uberlândia, ela mal consegue entrar. Mas isso não importa, seu gerente já está de saco cheio dessa “desculpa”. Por que não acordou mais cedo?

Ela acordou. Nós acordamos. Aliás, já estamos acostumados com esse “mais” cedo. É que, quando se vem da periferia, fazer “mais” é condição mínima de sobrevivência. É preciso se esforçar duas, três vezes mais para ficar ao menos na média. É necessário dedicar algumas horas a mais antes de dormir para fazer aquela atividade da escola ou da faculdade, já que precisou conciliar seus esforços diários com o trabalho. E, sim, passamos mais de hora do nosso precioso tempo à mercê de um transporte público ineficiente.

Ah, me dê só um minuto. Lá vem mais um ônibus e dessa vez parece que ele vai parar. Ufa, entramos. O motorista não parece muito contente. É que hoje, pra não perder o costume, estão operando com um carro a menos. E aí o tumulto fica ainda maior. “Pessoal, dê um passinho pra trás. Sei que está apertado, mas com jeitinho todo mundo entra”, disse, atordoado. É, ele não parecia estar muito bem. Com a recente retirada dos cerca de 900 cobradores, cujo melhor termo seria auxiliares de bordo, o acúmulo de função os têm sobrecarregado. Os motoristas agora são responsáveis por cobrar as passagens, operar a plataforma de acesso dos cadeirantes e controlar o fluxo de passageiros. Tudo isso enquanto dirige, o que não parece ser algo muito prudente.

Me ajeitei de um modo bem específico. Em pé, mochila pra frente, um dos braços entrelaçado em uma barra de ferro e, o outro, com o celular em punho. Já que a viagem será longa, aproveito esse momento para finalizar um trabalho que preciso entregar na próxima aula. É, eu sei. Não é o ideal, mas é o possível. Cheguei exausto ontem em casa e, infelizmente, não deu para fazer tudo.

Cerca de 40 minutos se passaram e chegamos no Terminal Central. Pela janela, percebo que o meu próximo ônibus já chegou. Poderia correr, mas não vai adiantar. A plataforma dele está lotada, devo conseguir entrar apenas no próximo. Espero que não demore.

Minutos depois, ele chega. Aqui é preciso redobrar a atenção. Coloco minha carteira no bolso da frente e certifico que meu celular ainda está comigo. Um passo de cada vez, estilo formiguinha, vamos nos aproximando da porta do ônibus. Algumas pessoas mal esperam as outras descerem e já começam com o empurra-empurra.

O ônibus sai do terminal e, antes de chegar na primeira estação, um garoto, 14 anos, rosto abatido, anuncia… “Bom dia, pessoal. Desculpa estar atrapalhando o silêncio da viagem de vocês (…)”. Ele vende gominhas. Junto da mãe e uma irmã mais nova, mora de favor e passa por dificuldades. Pergunto se está frequentando a escola, mas ele desconversa. Percebo que não está afim de muito papo. Junto algumas moedinhas e dou a ele em troca de algumas balas.

Na próxima estação ele desce e, logo na sequência, sobe o Seu Geraldo. Um homem de meia idade, cheio de mochilas e sacolas que vende de tudo. Descascador de alho, canivetes, garrafinhas d’água. Qualquer coisa que facilite a rotina dos trabalhadores que andam de ônibus. É, ele parece ter entendido bem o espírito empreendedor.

Empreendedorismo, palavra que está em alta, assim como a informalidade. Pessoas como o Seu Geraldo passaram a compor uma  preocupante estatística. Ao final do ano passado, o IBGE registrou cerca de 37 milhões de trabalhadores informais. Eles representam cerca de 40% da população ocupada, ou seja, dois em cada cinco trabalhadores.

A realidade dele é ainda mais próxima da de centenas de outros uberlandenses. Ele trabalhava em um grande atacadista da cidade que encerrou parte de suas atividades no estado. O grupo, que faz parte da história de desenvolvimento da cidade, encontrou em Goiás uma política de incentivo fiscal mais atraente. Com isso, demitiu em massa centenas de trabalhadores e trabalhadoras, dentre eles, o Seu Geraldo.

Minha estação é a próxima. Peço licença ao moço, desço e caminho em direção à UFU. Poxa, mil perdões. Não me apresentei bem. Prazer, sou aluno de jornalismo. É que diante dessa emocionante peregrinação, algumas informações se perdem no caminho. E, sim, estou indo para a aula agora. Se você pode vir comigo? Mas é claro. A UFU tem uma política de alunos ouvintes, o que é bem legal para conhecer mais sobre os cursos. Não se acanhe, a professora é uma graça, você vai adorar. E, se eu fosse você, aproveitava agora, já que com o recente anúncio do Ministro da Educação em cortar 30% do orçamento do ensino superior público, pode ser que as coisas se compliquem em breve.

Aqui é a nossa agência de notícias. Em regra, nossas produções textuais jornalísticas passam por aqui. Puxe uma cadeira, vamos fazer uma pesquisa sobre nossa temática de hoje, o transporte público. Garanto que acharemos algo interessante produzido pelos próprios membros da UFU. (Carregando…) (…)

Ih, olha só! Não te falei? Clica nessa monografia de julho de 2018, do Ruan Dotta, egresso da Engenharia Civil. Caraca, ele fez uma pesquisa sobre a qualidade do transporte coletivo de Uberlândia com base na opinião dos usuários. Huumn, vejamos essa tabela com os resultados obtidos.

Então, como percebemos, os dados da pesquisa refletem muito realidade que vivenciamos hoje. E é assim que a universidade deve ser, geradora de conhecimento que vá ao encontro da população, principalmente daquela camada mais vulnerável socioeconomicamente. Digo isso porque é essa classe social que financia nossos estudos e que muito dificilmente se beneficia da estrutura da UFU enquanto alunos.

Ainda em relação à pesquisa do Dotta, algo que me anima é a possibilidade do seu trabalho servir para embasar ou reforçar as decisões do poder público em investir em políticas públicas eficientes de transporte público. A construção de novos corredores, como o da Segismundo e o próprio do Terminal Novo Mundo, já foi um ótimo passo. Espero que quando o Terminal Jardins, o Universitário e o Dona Zulmira também saírem do papel, nossa realidade possa ser outra. Esse último já está em construção.

Bem, a aula já vai acabando e eu preciso correr para o meu trabalho. E você, não se preocupe, pode passar a tarde aproveitando as atividades que rolam por todo o campus. Tem workshop, palestras, apresentações artísticas, o que preferir. Ah, tem um pôr do sol encantador. Nos encontrarmos no final da tarde, combinado?

E aí, curtiu? Tenho certeza que sim. Agora é preciso nos apressar. O horário de pico já vai começar. Ah, já pega o dinheiro. De preferência, que esteja trocado. Isso ajuda demais para não travar a fila de embarque. Nosso ônibus é aquele, o mesmo da vinda. Esse parece que não está tão cheio, que estranho.

Na estação seguinte, entra um artista de rua. Ele toca um instrumento diferente, mas muito cativante. Ao final da apresentação, puxo um papo. Ele me diz seu nome, mas não compreendo bulhufas. Ele é venezuelano e viaja pela América Latina há anos. Pergunto sobre a crise em seu país, e ele prontamente responde. “A Venezuela é muito maior do que o que se passa na TV. Quando saí de lá, era um país muito rico e próspero. Éramos unidos, mas hoje… Por isso, se eu puder lhe deixar um recado é para que valorize seus irmãos, aqueles artistas (apontou para um malabarista no semáforo) que lançam sua luz para alegrar a vida de vocês. Saiba reconhecer a importância desses detalhes’’, afirmou.

Chegamos no Terminal Central. Vale a pena repetir que todo cuidado é pouco. Olha lá, nosso ônibus já vem vindo. Se formos rápido, talvez dê até pra gente sent… é, não deu. Mas você fez bem em ceder o lugar pra essa senhora. Acredita que tem gente que finge que tá dormindo só para não levantar? É, tem gente pra tudo. E o fato de existir uma lei que nos obrigue a ceder o assento, o que deveria ser feito meramente por educação e alteridade, é um forte indicador de que ainda temos muito a evoluir enquanto sociedade.

Costumo dizer que meus lugares favoritos de reflexão são embaixo do chuveiro, na intimidade do nosso ser e, também, dentro de um busão, na pluralidade de cada indivíduo. Aqui no coletivo parece não haver distinção, porque mesmo diante da peculiaridade de cada história, sempre haverá um ponto de convergência. Estamos todos de passagem por aqui.

E, por falar em passagem, olha só aquela passageira ali. Ah, quanta representatividade! Uma mulher, negra e, muito provavelmente, moradora da periferia. Em sua mão, um livro. Entre trancos e barrancos, ela intercala o olhar entre as páginas e a realidade janela à fora. A identificação é instantânea. Frequentemente divido também o papel de protagonista dessa cena. E, cada vez mais, percebo que não estou sozinho.

Apesar de ser privilegiado por ser um homem branco e não sentir na pele as inúmeras adversidades que ela deve passar, encontrei algo em comum. Compartilhamos algumas lutas e, sobretudo, o desejo pela ferramenta que nos capacita para lutar: a educação.

E, muito embora o ponto final desta linha em que estamos ser a extrema margem do sistema, nossa gente caminha diariamente em direção contrária. Exemplos como o dessa moça, e de todos os demais passageiros que vimos ao longo do dia, são a prova de que, sim, pra gente pode até ser duas, três, quatro vezes mais difícil, mas não quer dizer que seja impossível.

Estamos dando nossos próprios passos, construindo nossas próprias linhas. Nossa próxima parada? Bem, aos centros de discussões, aos centros de poder, aos centros de representatividade! Esse é o ponto.

 

Gustavo Medrado é estudante de jornalismo na Universidade Federal de Uberlândia. Recentemente, ele foi premiado com a possibilidade de fazer a cobertura da Brazil Conference, na Universidade de Harvard, em Cambridge, Estados Unidos.

A matéria original pode ser lida na Agência Conexões, agência experimental de comunicação da UFU: https://www.agenciaconexoes.org/quando-o-ponto-de-onibus-se-torna-um-ponto-de-interrogacao/?unapproved=326&moderation-hash=219e5416a840daf47f5797057be4866a#comment-326

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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