Quando corrigiremos as aberrações do Mensalão?

Joaquim Barbosa e o procurador-geral da República, Antonio Fernando de Souza, que que denunciou os 40 réus da Ação Penal 470

Reproduzimos a matéria “O papel da mídia” de Miguel do Rosário, de O Cafezinho, com introdução de César Locatelli, dos Jornalistas Livres.

Introdução

Passados alguns anos é hora de rever e corrigir as aberrações paridas pelo Supremo Tribunal Federal e pela Procuradoria Geral da República na Ação Penal 470, que ficou conhecida como “Mensalão”. Não há mais dúvidas que esse julgamento abriu a porteira para as ilegalidades e arbitrariedades cometidas no Brasil nesse último período. Da mesma forma, não hesitamos em atribuir categórico protagonismo às redes de televisão, rádios, jornais e revistas da mídia conservadora na ruptura democrática por qual passa o país.

Comecemos pelo papel do sistema de justiça brasileiro.

Não podemos mais dizer que o país vive em um Estado Democrático de Direito, se é que podemos dizer que um dia nele vivemos, dada a ausência de direitos que desde sempre aflige os pobres e os negros. A diferença é que, desde o Mensalão, os adversários políticos escolhidos pelas elites brasileiras passaram também a não ter direitos. São inúmeras as evidências de que a lei e a Constituição nunca regularam a convivência social e, agora, não mais regulam a convivência política.

Relembremos a imaginosa versão dos fatos cantada em prosa e verso pelos meios de comunicação tradicionais brasileiros e aceita pelos ministros do STF:

Henrique Pizzolato, na função de diretor de marketing do Banco do Brasil, desviou cerca de 74 milhões de reais do banco para a agência de publicidade DNA, de Marcos Valério. Pizzolato recebeu cerca de 300 mil reais desse montante e comprou um apartamento. Parte do dinheiro foi distribuído mensalmente a políticos, como os deputados do PTB capitaneados por Roberto Jefferson. Parte dos recursos foram para o PT via empréstimos falsos firmados com o Banco Rural. A estratégia elaborada por José Dirceu e outros membros do governo Lula tinha como objetivo comprar o apoio a projetos do governo como a reforma da Previdência. Delúbio Soares cuidava dos aspectos operacionais do esquema. O Supremo Tribunal Federal (STF), que tinha Joaquim Barbosa na função de relator do processo e presidente da casa, condenou cerca de 38 pessoas envolvidas com o que se apelidou de Mensalão.

Assim é a versão dos fatos que está impregnada nas pessoas por todos os cantos do Brasil.

A tragédia é que, nesse curto parágrafo acima, há 7 erros crassos cometidos pelo STF.

1 Não havia dinheiro público

Os 74 milhões não eram do Banco do Brasil, uma empresa pública, mas da Visanet, uma empresa privada. Se não há dinheiro público, não há peculato, ou seja, não há apropriação de dinheiro ou bens públicos por funcionário publico. A fantástica história teria morrido no nascedouro se os ministros do STF tivessem acatado esse fato.

2 O diretor de marketing do Banco do Brasil não tinha gestão sobre os recursos

O acordo do Banco do Brasil com a Visanet era que o banco determinava onde queria que os recursos fossem aplicados. A gestão financeira e a relação com as agências de propaganda eram de responsabilidade da Visanet. O banco sequer tinha contrato com a agência de publicidade. A agência de publicidade tinha que prestar contas à Visanet. No entanto, se inocentassem Henrique Pizzolato o caso todo desmoronaria.

3 O dinheiro não foi desviado

Há notas fiscais e documentos de transferência que comprovam que os 74 milhões foram efetivamente usados na promoção do cartão Ourocard Visa. Os recursos foram usados para patrocinar torneios de tênis, vôlei de praia, anúncios em aeroportos e muitos outros eventos de marketing. Foram feitos pagamentos inclusive para a TV Globo por campanhas de Dia dos Pais, Dia da Crianças e Natal. As comprovações de que não houve desvio dos 74 milhões foram, simplesmente, desconsideradas.

4 Pizzolato tinha dinheiro declarado para comprar seu apartamento

O exame do imposto de renda de Pizzolato não comprovou que os recursos, que o STF concluiu terem sido sua parte no desvio, foram usados na compra do apartamento. Pizzolato tinha poupado, ao longo de 20 anos de trabalho, um montante suficiente para a compra do apartamento.

5 Nada foi comprovado contra José Dirceu

Embora fossem quebrados os sigilos telefônico e bancário de José Dirceu, acusado de chefe do esquema, nada foi encontrado. Mesmo assim, ele foi condenado com base na teoria do domínio do fato: pelo alto cargo que ocupava no governo e no PT “era evidente” que José Dirceu tinha participação no desvio. A ministra Rosa Weber lançou mão da seguinte pérola ao condená-lo: “Não tenho prova cabal contra Dirceu – mas vou condená-lo porque a literatura jurídica me permite”.

6 Não houve mensalão, não houve pagamentos mensais a congressistas

A tímida reforma da Previdência feita durante o governo Lula contou com apoio dos políticos conservadores do Congresso que, embora fizessem oposição forte ao presidente, apoiaram a reforma. Além dessa evidência, o processo não comprova a tese de pagamentos mensais (mensalão) a congressistas.

7 Os empréstimos do Banco Rural ao PT não eram falsos

O Partido dos Trabalhadores pagou os empréstimos que tomou junto ao Banco Rural.

 

Reproduzimos aqui a excelente matéria escrita por Miguel do Rosário, do blog O Cafezinho, publicada em 7 de junho de 2013.

A conspiração

O papel da mídia

Uma das virtudes fundamentais no espírito de um jornalista é a ojeriza a teorias de conspiração. É uma virtude, no entanto, que beira um vício, porque o mesmo pensamento racional, a mesma objetividade, que nos aconselha a manter distância de discursos paranoicos e teorias de conspiração, nos obriga a aceitá-los quando estamos diante de documentos e provas irrefutáveis.

A divulgação de milhares de documentos secretos da diplomacia norte-americana, pelo Wikileaks, consistiu, por exemplo, numa inesquecível vitória moral para milhares de pessoas que acusavam, há décadas, os EUA de promoverem golpes de Estado em países do terceiro mundo. Na época, um divertido argumento fez sucesso nas redes sociais: “sabe aqueles malucos que viviam culpando a CIA por tudo? Estavam certos.”

A bem da verdade, não foi apenas o Wikileaks. Algumas leis que obrigam a divulgação de documentos do governo americano com mais de trinta ou quarenta anos, também ajudaram.

Mas ser jornalista não é dizer a verdade. Essa é a função, talvez, de filósofos. Jornalistas divulgam documentos e fatos concretos, e a verdade que buscam é apenas aquela que podem comprovar com base neles. O uso da lógica, porém, não é vetado aos jornalistas. Nem a imaginação, desde que usada com parcimônia.

No processo do mensalão, todavia, a imaginação se tornou a virtude fundamental do jornalismo político. Reportagens, colunas, análises, passaram a se descolar cada vez mais de qualquer prurido factual e inaugurou-se uma nova era quase psicodélica na imprensa brasileira. Teorias eram montadas e desmontadas sem qualquer escrúpulo. O fato de inúmeras denúncias serem desmentidas no dia seguinte não tinha mais importância. Um clima de total liberdade de expressão enfim se instalara nas redações nacionais.

Quando os historiadores se debruçarem, daqui a alguns anos, sobre o mensalão, o tradicional rigor acadêmico possivelmente lhes obrigue a dividir o tema em várias seções: política, midiática, partidária, jurídica.

Em meu modesto esforço para escrever sobre um caso ainda em curso, e portanto ainda influenciado pelo clima barra pesada, sufocante, de tribunal, eu vou tateando em todas as áreas, mas a corda que uso para não cair são documentos. Por isso tenho sido repetitivo quanto ao caso Pizzolato. É que me parece o caso mais surreal, kafkiano e… documentado. A sua inocência é documentada.

Se a grande mídia fizesse uma ampla reportagem sobre os erros na condenação de Pizzolato, mostrando os documentos, apresentando-os a juristas conceituados e pedindo sua opinião, testemunharíamos uma sumária desmoralização da Ação Penal 470. Aliás nota-se hoje um barulhentíssimo silêncio nos grandes jornais e nas redes de TV sobre o debate tão aceso nas redes sociais e blogs, sobre os erros do STF. A ruptura da mídia com a sociedade se tornou completa. O artigo da Inês Nassif, por exemplo, abordando a suja história do Laudo 2828, que inocenta Pizzolato, tornou-se imediatamente o mais lido em todos os principais blogs políticos no país, mas o assunto é virtualmente proibido na grande imprensa. A mesma coisa vale para o erro crasso de Barbosa quanto a data da morte de José Martinez.

A nossa presidenta gosta de repetir o clichê supostamente pró-democrático, sobre preferir o barulho da imprensa ao silêncio da ditadura. É uma frase bonita, mas a verdade é que o único barulho que a imprensa quer ouvir, no caso do mensalão, é o da tampa de um caixão se fechando. A nossa mídia não é boba. O espaço à divergência se dá apenas em questões não estratégicas. E o mensalão é um assunto absolutamente estratégico para os grandes grupos de mídia, que se tornaram, assumidamente, o grande partido do conservadorismo brasileiro.

Entretanto, mesmo durante o julgamento, quando o assunto ocupava, diariamente, várias páginas de jornal, e hegemonizava o noticiário televisivo, havia muitos mais fogos de artifício do que conteúdo. Não havia um debate sério sobre o tema. O tal “barulho da imprensa”, tão ao gosto da nossa chefe de Estado, era apenas um rufar histérico dos tambores da oposição. Os réus, porém, não eram só aqueles perfilados na denúncia da Ação Penal 470, mas toda a sociedade, incluindo os elementos raivosos que pagavam anúncios no Facebook para promover páginas repletas de indizível rancor. Todos são vítimas do maior processo de manipulação da informação de que temos notícia.

O mensalão foi o canto do cisne da grande mídia brasileira. O escândalo é deflagrado exatamente no momento em que a internet ainda não havia sido “apropriada” pela sociedade. Os únicos blogs políticos estavam em mãos da grande mídia de oposição: Noblat e Reinaldo Azevedo. A imensa ágora pública, caótica e democrática em que se tornou a internet brasileira não havia se constituído nos anos de 2005 e 2006. A imprensa reinava sozinha. Se hoje ela ainda tem um poder descomunal para influenciar o espírito nacional, naquela época esse poder era quase absoluto.

Uma das seções mais importantes no estudo do processo do mensalão, portanto, é o papel da mídia. É um papel que ainda está sendo desempenhado. Hoje, sexta-feira 07 de junho, uma notícia deixou inteiramente perplexa a grande nação de internautas: o único jornalista convidado pelo ministro Luiz Fux para dar uma “aula pública” aos ministros do STF sobre financiamento de campanha será Merval Pereira, colunista e membro do conselho editorial do jornal O Globo.

A promiscuidade entre a grande mídia, em particular a Rede Globo, e o STF, parece não encontrar limites. Até mesmo os juízes mais resistentes à pressão da mídia, como Lewandowski, ligavam para Merval, no dia seguinte a sessões, para “explicar” seus votos. Joaquim Barbosa, por sua vez, liga regularmente para Merval para justificar seus destemperos.

E Ayres Britto escreveu o prefácio do livro de Merval Pereira sobre o mensalão enquanto ainda era presidente do Supremo Tribunal Federal (STF)!

Se a mídia é um poder terrível em qualquer parte do mundo, uma concentração absoluta numa só empresa empresta-lhe um ar perigosamente antidemocrático.

A maior parte da “pressão social” alardeada pela grande mídia, e usada pelos próprios ministros do STF como justificativa para a incrível criatividade com que se portaram no julgamento da Ação Penal 470, a ponto de ser qualificado, de maneira promissoramente corajosa pelo mais novo ministro, Luís Roberto Barroso, de “um ponto fora da curva”, veio da Rede Globo. Com toda certeza, os ministros se portavam no tribunal com um olho não na população brasileira, não na História, mas em como seriam caricaturizados no Globo no dia seguinte. As notinhas de Ancelmo Gois sobre Joaquim Barbosa, alardeando sessões de aplauso no metrô de Ipanema e shows da Marisa Monte, e mencionando, orgulhosamente, a criação de um site para lançar sua candidatura presidencial, parecem ter surtido um efeito narcótico poderoso no espírito de todos os juízes. Da mesma maneira, a mídia incitava agressões verbais ou mesmo físicas contra Lewandowvki, único ministro que ousou se contrapor, e mesmo assim timidamente, à agressividade inacreditável do relator.

No início do texto, eu falava na ojeriza a teorias de conspiração como importante virtude jornalística. Mencionei também que esta virtude pode se tornar um vício se nos recusamos, mesmo diante de evidências, em aceitar a existência de uma conspiração. O que vimos no processo do mensalão nos traz esse dilema. Todos os fatos, documentos, ações, discursos e posturas, apontam para uma conspirata política. Uma conspirata da qual participaram os dois procuradores gerais da república, Joaquim Barbosa, a oposição, a mídia. O próprio governo, vergado, intimidado, aterrorizado com a possibilidade de um golpe, talvez tenha pactuado, em parte, com tudo isso, sacrificando seus próprios companheiros em prol da sobrevivência. Enfim, estamos diante de um jogo político extremamente barra-pesada.

Mesmo com evidências, porém, este é um terreno que devemos trilhar com cuidado. Não podemos largar a corda que nos impede de cair no abismo. O mensalão ainda é uma história cheia de segredos, desagradáveis para todos os lados. É um processo e um julgamento ainda em curso. No próximo capítulo, faremos algumas incursões na seara propriamente política da nossa história, comentando seus desdobramentos presentes e futuros.

Notas

1 Para ler os outros textos de Miguel do Rosário, em O Cafezinho:

Prefácio: Mensalão, a história de uma farsa

Capítulo 1: Acusações contra Pizzolato lembram Dreyfus e Kafka

Capítulo 2: O caso Visanet

Capítulo 3: As bombas lá fora

Capítulo 4: Tirem as crianças da sala

Capítulo 5: As bombas aqui dentro

Capítulo 6: A história não anda de avião

Capítulo 7: O julgamento do povo

Capítulo 8: O maior fiasco da história

Capítulo 9: O papel da mídia

2 Essa matéria recebeu o selo 018-2018 do Observatório do Judiciário.

3 Para ler outras matérias do Observatório do Judiciário:

https://jornalistaslivres.org/categoria/observatorio-do-judiciario

 

 

 

 

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