Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Foi com grande surpresa que o mundo recebeu os resultados das eleições presidenciais na Argentina. Primeiro, em agosto, quando o controverso deputado Javier Milei foi o candidato mais votado nas primárias, com 30% dos votos, assumindo a liderança da chapa Libertad Avanza. Em seguida, no 1° turno realizado no último dia 22. Sérgio Massa, candidato situacionista e atual ministro da Economia, assumiu a dianteira da disputa, com 35,56% dos votos. Milei ficou em segundo lugar, com 30,05%. Os dois candidatos disputarão o segundo turno, el ballotage, a ser realizado em 19 de novembro.
Até aqui, as pesquisas erraram para todos os lados. Não detectaram a força de Milei e tampouco identificaram a recuperação de Massa. Isso mostra os limites que as pesquisas inventadas para entender os sentimentos das sociedades de massa estão enfrentando. A dinâmica das mídias digitais parece exigir novas metodologias de investigação e os institutos especializados ainda não encontraram a calibragem adequada.
Quero discutir o significado político profundo das eleições presidenciais argentinas.
Em um mundo hiper conectado, algumas experiências políticas, inevitavelmente, se tornam transnacionais. É o caso da crise da democracia liberal representativa, que se manifesta no Brasil, nos EUA, na Inglaterra, na França, na Espanha, na Hungria, na Polônia, na Turquia e na Argentina, pra ficarmos em poucos exemplos.
A crise democrática global é uma das principais características dos nossos tempos e a disputa eleitoral na Argentina expressa essa realidade.
Como?
A resposta nos leva à figura de Javier Milei.
A quebra do decoro na comunicação social, a motosserra como símbolo de destruição, a autorrepresentação como outsider revolucionário capaz de destruir os privilégios das elites. Um tipo de retórica política que no passado pertencia às esquerdas e agora foi tomado pela extrema-direita. Hoje, são as esquerdas que defendem a ordem democrática liberal.
Quem te viu, quem te vê….
As semelhanças entre Milei e Bolsonaro são óbvias, assim como as afinidades entre Massa e o governo Lula também são. A prudência diplomática que recomenda aos governos que não se intrometam nos processos eleitorais de outros países caiu por terra.
O PT enviou marqueteiros à Argentina. O Brasil foi avalista da entrada da Argentina no BRICS e manifestou disposição em financiar o gasoduto de Vaca Muerta.
A comunicação institucional do governo brasileiro não poupou fotos em que o presidente Lula e o ministro Haddad aparecem confraternizando com Sergio Massa. O destinatário dessas imagens, obviamente, é o eleitorado argentino. É como se o Brasil estivesse prometendo que o possível governo Massa contaria com a ajuda econômica do país mais rico da região.
A eventual vitória de Milei seria, sim, fator de desestabilização para o esforço de reconstrução democrática que está sendo empreendido pelo governo Lula. Significaria, também, injeção de ânimo na militância bolsonarista.
O outro lado também não está poupando esforços.
Eduardo Bolsonaro foi a Buenos Aires manifestar apoio a Milei e tentar fortalecer sua posição de líder da internacional pós-fascista. Eu poderia apostar que será ele o escolhido para suceder o pai nas urnas em 2026. Tarcísio de Freitas, Zema e companhia ficarão chupando dedo. Mas isso é conversa para outro momento, para outros textos.
Retomando a pergunta inicial:
Ainda que a vitória parcial de Sérgio Massa no 1° turno mostre a grande resiliência do peronismo, algo continua muito errado no sistema democrático argentino.
Milei relativiza os crimes cometidos pela ditadura. O fato de um sujeito assim ter tanta força eleitoral no país que colocou em prática a mais eficiente justiça de transição da América Latina era algo impensável até pouco tempo atrás.
O fenômeno Milei traduz a tristeza e a revolta geradas pela incapacidade da democracia liberal em promover um mínimo de bem-estar social no atual estágio da acumulação capitalista.
Para as classes políticas democráticas fica o desafio de compreender o real sentido da crise: “democracia” não é apenas um conceito, não é tão somente uma abstração. Precisa ser experiência concreta de dignidade social e bem-estar material.
A ação política democrática precisa, no mínimo, moderar apetite do capitalismo pós-industrial, no sentido de preservar os direitos sociais e laborais produzidos pelo social-democracia ao longo da segunda metade do século XX.
Para quem tem o prato vazio, pouco importam as diferenças formais entre ditadura e democracia.