“A vingança é uma espécie de justiça selvagem”, teria escrito o filósofo, jurista, e ensaísta inglês, em seus “Ensaios sobre moral e política” em 1625.
No verão em São Paulo, em dias de muita chuva acontece de algumas árvores caírem. Isso causa um certo tumulto no trânsito.
Os motoristas, que acreditam que a cidade foi feita para os carros, onde não mais cabem as árvores, blasfemam contra o absurdo de uma árvore impedir o trânsito.
Sem lugar em meio a tanto concreto, sem espaço para fixarem suas raízes, estressadas por uma cidade tão absurda, imaginamos algumas dessas árvores “tomando os carros como reféns”.
A citação original, de um passado já remoto, sugere a ideia de que, quanto mais flui a natureza humana, mais deve a lei extirpar o sentimento de vingança. Minha apropriação da frase, no presente, ecoa nessa imagem de um carro suspenso por uma árvore. Um ícone da modernidade e da industrialização, fetiche reincidente nas grandes metrópoles, sequestrado por uma natureza em estado selvagem.
A princípio, em projeto de 2013, o ambiente seria urbano: árvores resilientes vingariam a condição que lhes foi imposta, à vista de tantos veículos vagando atrapalhados pelas vias da cidade. Mas os desígnios das circunstâncias levaram o projeto a outro ambiente.
Em 2016, o carro, um Fusca branco foi instalado no alto do mirante da Fazenda Serrinha, suspenso por um eucalipto longilíneo e valente.
Houve quem notasse o contraste de tal ícone industrial em derrocada diante da força da natureza que se recuperava de um incêndio recente na montanha.
Do alto de um galho em forquilha, a cena expõe a submissão da carcaça de ferro e aço à paisagem, exibindo contradições da relação entre espaço rural e urbanidade, entre natureza e tecnologia.
E desde então a instalação faz parte do complexo de obras do Parque Serrinha. Aberto à visitação pública o trabalho foi visto e fotografado por milhares de visitantes, o que foi proporcionando uma forma de entender a ação do tempo sobre a obra, entre um acontecimento do passado e especulações sobre o futuro possível.
A árvore manteria o carro erguido? Por quanto tempo? Como as partes de ferro e aço resistiriam aos desígnios da natureza?
Em 2020, novas contingências levaram o trabalho a migrar conceitos e renovar suas bases iniciais: um incêndio fez despencar o Fusca de ponta cabeça rumo ao chão.
Chamuscado por um fogo alarmante, (aparentemente espontâneo, mas de uma terra que já reclama os descasos com o planeta) e logo tomado por ferrugem, os termos do acerto de contas inicial se reforçaram por outras vias.
Ferrugem e terra, carvão e pele. Marcas, vestígios, ritos, cenas refeitas, paisagens reapropriadas. A presa se extingue. Tudo se ressignifica.
A natureza segue, o progresso se enterra, em vias de se tornar vestígio.
Uma mostra irônica [proto-museológica] do que foi um dia a exaltação da máquina sobre o indivíduo, em estado ainda latente. Vingança.
Uma espécie de futuro do passado. Dos Lugares Entre a Vingança e a Justiça.
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Minibio
Lucas Bambozzi é artista e curador independente, com trabalhos já exibidos em mais de 40 países. Desde os anos 90 explora novas possibilidades de arte envolvendo meios de comunicação tendo sido um dos iniciadores do Festival arte.mov e dos projetos Labmovel, Multitude, ALTav, Prenúncios + Catástrofes, dentre outros. É professor no curso de Artes Visuais na FAAP e concluiu seu doutorado na FAUUSP com pesquisa envolvendo campos informacionais em espaço públicos.
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Para conhecer mais o trabalho do artista
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O projeto Futuro do Presente, Presente do Futuro é um projeto dos Jornalistas Livres, a partir de uma ideia do artista e jornalista livre Sato do Brasil. Um espaço de ensaios fotográficos e imagéticos sobre esses tempos de pandemia, vividos sob o signo abissal de um governo inumanista onde começamos a vislumbrar um porvir desconhecido, isolado, estranho mas também louco e visionário. Nessa fresta de tempo, convidamos os criadores das imagens de nosso tempo, trazer seus ensaios, seus pensamentos de mundo, suas críticas, seus sonhos, sua visão da vida. Quem quiser participar, conversamos. Vamos nessa! Trazer um respiro nesse isolamento precário de abraços e encontros. Podem ser imagens revistas de um tempo de memória, documentação desses dias de novas relações, uma ideia do que teremos daqui pra frente. Uma fresta entre passado, futuro e presente.
Outros ensaios deste projeto: https://jornalistaslivres.org/?s=futuro+do+presente