Preto no Branco – as ruas nos dias 13 e 18

 

A manifestação do dia 13 foi pensada, em grande parte, como um espetáculo para causar impacto político. E a cobertura dedicada, um dia inteiro em todas as mídias, deixou muita gente convencida.  E não é para menos. Uma imensa máquina foi posta em funcionamento para operar esse efeito. Mas basta colocar o preto no branco, para reduzir o evento a sua real dimensão. Que está muito distante daquilo que ele pretende ter sido.

O primeiro preto no branco que é preciso colocar diz respeito às multidões bíblicas que os apresentadores da Globo enxergaram nas ruas no dia 13. O portal G1 fala em 3,6 milhões de manifestantes. Para um país de mais de 204 milhões de habitantes, temos que admitir, embora isso vá magoar os Marinhos, que é um número ridículo. É menos de 2% da população total. Isso com números hiperinflados. Números tão absurdos que chegamos a deparar a seguinte situação: para a avenida Paulista, o DataFolha dá 500 mil, a polícia militar, 1 milhão e 400 mil, e os organizadores do Vem Pra Rua, 2 milhões e meio.

Esses bons rapazes, usando o método da mentira descarada, estimaram um número cinco vezes maior que o Datafolha. Deram um bom exemplo de como age a gente honesta que está querendo livrar o país da corrupção, com o apoio de Alckmin, Aécio, Bolsonaro, Magno Malta e afins.

O mais provável é que, em lugar dos 3,6 milhões comemorados pela Globo, tenham ido às ruas no país inteiro algo entre 1,5 e 2 milhões de pessoas. Isso é pouco menos de 1% da população.  Enfim, números que só parecem monumentais com o zoom deformador da mídia em sua ânsia de derrubar a democracia. Na verdade, considerados a frio, como números, não assustam. É só o nosso velho e conhecido 1% que condena o Brasil a ser um país estagnado, violento, gerido pelo totalitarismo policial e pela autocracia dos muito ricos. Ou seja, o 1% da população brasileira que possui metade da riqueza do país.

Esse 1% é o inimigo número um da democracia.

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Foto por Alessandra Santos

O segundo preto no branco diz respeito aos negros e sua ausência na festa branca do dia 13. A questão, que já foi posta por Maria Carolina Trevisan, retomo aqui por outra ponta. A festa branca não foi a de todos os brancos, mas de um punhado, que defende seus privilégios com unhas e dentes, e não aceita partilhar nada. Nem o espaço da avenida Paulista. Curiosamente, o Datafolha, que tem primado por trazer bons gráficos da composição social das manifestações, desde 2014, não apresentou o gráfico com os percentuais de brancos e negros. (Nesse artigo, vamos chamar de “negros”, para fins de apresentação dos dados, a soma de “pretos” e “pardos”)

Omitir esses dados é uma regressão enorme. Vai na contramão das boas práticas do jornalismo informativo e pode privar-nos, como vamos ver, de um aspecto essencial para compreender o Brasil hoje. É um caso grave de desinformação, desses que costumam ocorrer na escalada dos conflitos. A análise do que vem ocorrendo de 2014 para cá mostra, justamente, que a crescente adesão dos negros à defesa da democracia é o grande fato novo na história política do país. Se a Folha não nos disse quantos negros estavam na Paulista, o motivo é muito significativo e vale a pena tentar explicá-lo.

A percepção de uma avenida tomada apenas por brancos não foi ilusão visual, embora bem provavelmente, num país multirracial, multidões assim tão descoloridas sejam inéditas. Em sua manifestação sangue puro, a elite branca, o grupo mais endinheirado da sociedade brasileira, deu a si mesmo o espetáculo “de país branco, europeizado”,  que quer para o futuro: um país sem negros. Ora, a força que usou para essa proeza pode ser também o seu calcanhar de Aquiles: o do isolamento político. Ao que tudo indica, essa elite está sozinha, embora não tenha ainda percebido isso.

O país sem negros que almeja, nada mais é que a expressão do horror de perder privilégios de quem quer de volta uma universidade sem cotas, um aeroporto sem mistura (“aeroporto ou rodoviária?”), a empregada doméstica escrava, o fim da impertinência dos cabelos negros (“baixar a crista dessa gente”), etc. E que teme, sobretudo, que o pior ainda esteja por vir.

Mas a situação política deu passos sobre os quais eles parecem ainda não suspeitar.

Os dados que dispomos mostram que entre 2014 e 2015 o número de negros nas manifestações da direita branca reduziu-se brutalmente. De início, em 2014, pretos e pardos somados eram quase 50% dos presentes nos protestos que pediam o Fora Dilma. Mas isso não durou muito. Um crescente repúdio da parte dos negros pelos projetos que iam sendo delineados nessas manifestações,  levou-os a um afastamento crescente. E com isso, claro, as manifestações ficaram cada vez mais exclusivamente brancas. Veja-se a Tabela:

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A tabela mostra que entre agosto de 2014 e agosto de 2015, o número de pretos e pardos somados nas manifestações caiu de 47% (33 + 14) para apenas 20% (17+3), uma redução enorme. E a debandada foi maior entre os pretos, que de início eram 14% em 2014, mas terminaram sendo apenas 3% em 2015, quatro vezes menos que um ano antes. Isso significa muitas coisas e, a mais importante de todas, é que os negros percebem que não há lugar para eles onde se grita contra as cotas, busca-se reduzir a maioridade penal,  aplaude-se a PM e os humoristas racistas, demoniza-se o bolsa família, além de chamar negros e sem terras de vadios e preguiçosos.  Não se trata, ao que parece, tanto de defender um governo, o de Dilma, mas um programa, o da democracia.

Os negros que abandonaram a elite branca e passaram maciçamente a apoiar o governo que viam como mais representativo da democracia. Eles entram em aliança com os brancos mais pobres, os das periferias, os que têm os rendimentos mais baixos. Nessa aliança, os negros marcam uma presença decisiva nas manifestações, como aconteceu em 20 de agosto de 2015. O gráfico do Datafolha é muito interessante:

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Os negros somam agora 49% e, ultrapassando os 46% de brancos da baixa classe média e das periferias, formam a maioria dos presentes nas manifestações contra o impeachment na cidade de São Paulo. E essa foi, com muita probabilidade, a tendência que se impôs no país inteiro. É muito provável que um dia, essa virada que deu aos negros um papel de protagonistas, que não tiveram em nenhum momento no passado, venha a ser entendido como um divisor de águas. Não cabe dúvidas de que saíram às ruas para fazer a defesa da democracia, das políticas de combate às desigualdades, das políticas de inclusão e das ações afirmativas.

É isso que explica a avenida Paulista do dia 13 de março, sangue puro, inteiramente branca, alva de cabo a rabo, ou, em outras palavras, incapaz de trazer os negros como massas de manobra para seus projetos políticos. Os negros não morderam a isca do convite para a grande festa cívica nas ruas brasileiras. Do ponto de vista político, isso significa que as elites que deram o show da Globo e que saíram cantando vitória, estão de fato mais isoladas que nunca.

O mesmo aconteceu com os brancos pobres que, por motivos semelhantes aos dos negros, relativos aos impactos positivos das medidas democráticas sobre suas circunstâncias de vida, não embarcaram na canoa dos brancos ricos em 2014 e 2015.

Dou apenas duas indicações, restringindo-me à cidade de São Paulo, e tomando por base as manifestações de agosto de 2015. Os brancos que recebem até R$ 1.576 (os pobres) representam 27% da população da cidade de São Paulo. Mas o número deles que foi protestar contra o governo Dilma em agosto de 2015 ficou apenas em 6% dos presentes. Já os brancos com renda entre R$ 15.760 (dez vezes mais que os anteriores) e R$ 39.400, que são a minoria ínfima na cidade, apenas 2% da sua população, eram 14% dos que estavam lá. Ou seja, superavam em sete vezes a sua proporção real.  O ódio ao governo Dilma não está entre os brancos, mas entre os brancos mais endinheirados. Quanto maior a renda, maior o ódio.

Quem sairá às ruas agora, em todo o país, são os pretos e os brancos mais pobres. Isso, claro, se tiver ônibus, trem, metrô, se não se montarem bloqueios policiais para parar carros e, o que certamente já deve estar em estudos em vários gabinetes, se não se estabelecerem barreiras de acesso às zonas centrais das cidades (como já se pratica em todos os verões cariocas).

Seja como for, a branquitude das ruas no dia 13 demonstra claramente a iminência de uma grande unidade de negros e brancos pobres no dia 18, ou seja, a unidade das periferias. Defender a figura de Lula, que a elite branca quer destruir a qualquer preço como símbolo da democracia, é agora o lugar visível dessa unidade.

Vamos ver se o gênio popular saberá antecipar e driblar os muitos obstáculos, do locaute ao blackout, do apagão digital ao cerco policial, que devem mostrar suas caras até a consumação do dia 18. O que está na rua, como ninguém ignora, não é apenas a luta contra o fascismo mas também, se houver êxito nessa, a luta por uma mudança radical nos rumos do governo Dilma em direção a uma política popular. Esse é o preto no branco que mais interessa.

*Bajonas Teixeira de Brito Jr. é doutor em filosofia, professor universitário e escritor

COMENTÁRIOS

3 respostas

  1. Eu me considero uma pessoa de esquerda, apesar da dificuldade em definir ou conceituar “esquerda”, hj. De qualquer forma, é ponto pacífico que me alinho mais aos posicionamentos do “jornalistas livres”, que ao posicionamento dos “MBL”s, “Antipetistas” e “revoltados contra corrupção” por esse Brasil afora. Dito isso, acho que vcs tem feito uma cobertura um tanto problemática, com um posicionamento um tanto maniqueísta. Me parece um pouco caricatural essa imagem passada por vcs do manifestante branco com medo do negro, manifestante indignado com a tal perda de seus privilégios, que quer “colocar o negro em seu lugar” (como li em outro site). Desinformado, provavelmente; mal-informado, tenho quase certeza; manipulado, acredito; maldoso? Acho que não. Lembro de ter visto em alguma pesquisa que boa parte dos manifestantes do 13 de março não eram a favor da criminalização do aborto, nem acreditavam que não existe racismo no Brasil, nem acreditavam que as mulheres estão em pé de igualdade com os homens… enfim, tinham claras algumas ideias que são tidas por nós, esquerda, como exclusividade nossa. Não imagino, sendo isso verdade ou não, o pq tenhamos que fazer com o “lado de lá” o que muitos fazem com a gnt, ou seja: menosprezar, simplificar, fazer caricaturas, torná-los inimigos, burros completos, cheios de ódio de raça e de classe, prontos pra babar de raiva ao primeiro sinal de igualdade. Se quisermos dialogar, me parece que o caminho não pode ser esse. Claro que há os raivosos, claro que há os ignorantes completos, mas me parece que reduzir uma massa (seja de 2 milhões ou 500 mil pessoas) dessa maneira é tratá-los de forma um tanto estúpida. A esquerda precisa de mais que isso, mais que entrar no Fla-Flu, mais que reforçar (e estabelecer novos) preconceitos, mais que falar em “Casa Grande e Senzala”, mais que estigmatizar quem vai às manifestações. Precisamos, entre outras coisas, estabelecer um debate de ideias (não de pessoas). O embate a favor das cotas, por exemplo, não pode ser tido como vencido e, a partir desse suposto resultado, passar a se tratar os que se opõe como escravistas sádicos. É preciso manter a serenidade, a clareza e argumentação. No fim das contas, todos acreditam estar certos sobre suas posições, acreditam serem boas pessoas e falarem, à sua maneira, por um país melhor (acredito eu). Não podemos reduzir toda uma pluralidade (ainda que dentro de um grupo social ou racial) a uma única imagem, um único pensamento e uma única vontade. Enxerguemos pessoas, por favor.

  2. As manifestações de 2013 nada tiveram a ver com os “somos todos cunha” de agora.Brancos foram de 48% para 75%, e pretos/pardos de 47% para 20%.Mais claro impossível.Os golpistas usaram aquele entusiamo como base e , na surdina, deram-lhe nova roupagem.

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