Pra onde olhar

O texto de hoje mostra de novo Fraquê, a personagem do conto de fadas moderno que ganhou direito ao exílio após executar o rei genocida.
Um momento de Fraquê após o príncipe

Um momento de Fraquê depois do príncipe.

Por: Dinha

Você sabe. Arrancar um olho
Dói como cavar túneis
Que tragam luz ao próprio corpo.

Esperanza – do livro Horas, minutas y segundas

Foi por isso que ela relaxou, botou óculos escuros e se espreguiçou na areia. As coisas sempre podem piorar.

Condição política de Fraquê

Naquele dia, Fraquê olhou o mar e não teve certeza se era mais bonito o horizonte,   o não lugar onde as ondas rebentavam ou as pedras no canto das praias,  lúcidas.

Com exceção do horizonte, cujo ar pesado turvava a vista,  tudo brilhava, como naquele ano em que pensou estar maluca, porque até as sombras ostentavam um brilho molhado, como as pedras à beira-mar.

Em que mundo sem alucinógenos as sombras brilham, pelamor? Pensou.

Alguma coisa no mar salgado e frio trouxe de volta o príncipe e sua quase história de amor.  Lembrou-se da abordagem invasiva, do sorriso autoconfiante e um pouco maligno, do seu próprio sobrenome inventado a contragosto e de súbito.

Uma onda, rebentando nas pedras, voando branca como as rendas do seu vestido de noiva,  respingou na sua cara e o choque frio a fez lembrar de que sua história ainda está, na verdade, sendo escrita: no ônibus,  numa sexta-feira à noite,  por uma cronista que se sente fortemente atraída por seu caráter implacável e seu passado de desilusão. 

Foi por isso que ela relaxou, botou óculos escuros e se espreguiçou na areia. As coisas sempre podem piorar.

Fraquê rolou e curtiu o sol de outono, cobertor quentinho contra o vento frio do mar.

Sua história estava em curso. Podia então moscar um pouco e só depois focar bem longe,  em vez de se fixar nas pedras,  nas ondas ou nas suas rebentações.

O horizonte,  pensou a moça,  era longe e inatingível.  Mas pelo menos era de lá que vinha o sol. Na sua praia,  ao menos. 

As ondas eram convidativas.

As pedras eram lúcidas. 

Mas era longe, no hipotético horizonte, que ela tinha alguma chance de ser quem ela bem entendesse.

Fraquê viu o sol a pino e o panorama ainda turvo, endureceu o tronco ossudo, levantou como onda no pico, se afastou do vuco-vuco e foi caçar comida. 


Dinha (Maria Nilda de Carvalho Mota) é poeta, militante contra o racismo, editora independente e Pós Doutora em Literatura. É autora dos livros "De passagem mas não a passeio" (2006), Maria do Povo (2019) e o recém lançado "Horas, minutas y segundas", entre outros. 
Nas redes: @dinhamarianilda

LEIA TAMBÉM algumas das crônicas anteriores:

Fraquê Matsunaga

O reizinho genocida

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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