Pra gringo ver através da fumaça

Durante evento do G20, Brasil tenta conciliar imagem de preservação ambiental em meio a onda de queimadas

Por: Safira Campos (@safiracampos), de Mato Grosso, exclusivo para os Jornalistas Livres

Quem percorre a Estrada do Manso, em Mato Grosso, neste mês de setembro, se depara com uma paisagem repetitiva: áreas com o que restou da vegetação do Cerrado e focos de queimadas. Esse é o cenário no caminho para o Malai Manso, o único resort all-inclusive do Centro-Oeste, que, entre os dias 10 e 13 de setembro, sedia a reunião técnica do Grupo de Trabalho (GT) de Agricultura do G20, formado pelas maiores economias do mundo, responsáveis por cerca de 80% do PIB global.

Imagem de divulgação do resort esconde seca e queimadas históricas

É nesse “oásis” à beira do Lago do Manso, no distrito de Água Fria, município de Chapada dos Guimarães, com temperaturas beirando os 40º e umidade perto de 10% que o Ministério da Agricultura e Pecuária (Mapa) organizou o evento “Construindo um mundo justo e um planeta sustentável”. Lá, em meio a uma histórica onda de incêndios florestais na região e no centro de uma nuvem de fumaça que atinge 60% do território nacional, se reúnem ministros e representantes de cerca de 30 delegações internacionais, com o objetivo de discutir temas como agricultura sustentável e mudanças climáticas.

O cenário na estrada entre o Aeroporto Internacional Marechal Rondon e o local do encontro do G20 é bem diferente. Foto: Safira Campos

O local foi estrategicamente escolhido pelo atual Ministro da Agricultura, Carlos Fávero, que foi vice-governador de Mato Grosso (2015 a 2018), maior produtor agrícola do Brasil, exatamente para reforçar sua imagem de compromisso com a preservação ambiental através do evento. “O antagonismo entre produção e preservação ficou para trás”, como destacou o ministro, na abertura do encontro ao enfatizar a “transformação das agroindústrias e a preservação ambiental” no estado, apesar das dificuldades causadas pelas queimadas.

Entretanto, enquanto o governo tenta associar o estado ao desenvolvimento sustentável, a realidade da seca e da devastação desafia a narrativa. O Parque Nacional da Chapada dos Guimarães, conhecido por suas cachoeiras e mirantes, teve vários atrativos fechados recentemente devido ao avanço das chamas. A contradição entre as mensagens de preservação e a devastação visível preocupa ambientalistas. Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) indicam que nenhum estado sofreu tanto com o fogo quanto Mato Grosso este ano. Até terça-feira (10), dia de início do evento, os satélites do órgão haviam registrado 37.222 focos de calor. Dos três biomas presentes no estado, a Amazônia concentrou 53% dessas queimadas, seguida pelo Cerrado (39%) e o Pantanal (8%).

Questionado sobre a escolha de Mato Grosso como exemplo de sustentabilidade em meio a tanta devastação, Fávaro argumentou que as mudanças climáticas são um desafio global, com muitos países enfrentando enchentes, secas prolongadas e incêndios. “Quando decidimos realizar este evento no centro do Brasil, em um estado que é o maior produtor de alimentos e que mantém mais de 60% do seu território preservado, sabíamos que estaríamos no período de seca. Esse risco era previsível”, afirmou.

Ao contrário do que diz o ministro, ambientalistas expressam preocupação com o avanço da agropecuária sobre o Cerrado. Dados divulgados em agosto pela iniciativa MapBiomas mostram que 38 milhões de hectares de vegetação nativa foram suprimidos entre 1985 e 2023, resultando em uma redução de 27% na cobertura natural do bioma, que inclui a Chapada dos Guimarães. Nesse período, a área destinada à agropecuária passou de 28% para 47%, o que também gera alertas entre cientistas. Apesar dos avanços na Amazônia, onde o desmatamento caiu 23% em 2023, no Cerrado o cenário é preocupante, com um aumento de 3% no desmatamento, o que corresponde à perda de 11.011 quilômetros quadrados, segundo o Inpe. As projeções para 2024 indicam uma destruição ainda maior, estimada em 12.000 km².

A devastação do cerrado cresceu, ao contrário das queimadas na Amazônia. Foto: Safira Campos

Esse aumento durante o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT) foi uma das razões que levaram um grupo de renomados cientistas a publicar uma carta na revista científica “BioScience” há cerca de três semanas. Os pesquisadores pedem a criação de um fundo de proteção para o Cerrado, similar ao que existe para a Amazônia, e ressaltam a necessidade de ampliar a visibilidade internacional do bioma. Philip Fearnside, biólogo e porta-voz da carta, critica o avanço da agricultura em Mato Grosso e destaca que a rápida expansão da soja, algodão e milho está eliminando a vegetação natural. Ele também alerta para o impacto das mudanças climáticas, com a seca severa já afetando regiões do norte de Mato Grosso e leste de Rondônia.

Diferentemente da tal sustentabilidade aliando produção e preservação, para Fearnside, o avanço da seca e das queimadas nos biomas “ameaça inclusive o grande trunfo do Brasil de conseguir duas sacas de soja por hectare, além de impactar a floresta, que vai perdendo suas características. Vai virando savana, mas não é uma savana biodiversa como o cerrado. Isso está ligado a esse processo de desmatamento influenciando no aquecimento global”, explica.

Enquanto o fogo avança, Cuiabá supera corriqueiramente recordes de calor. Com o céu coberto por fumaça e fuligem há semanas, a capital de Mato Grosso, atingiu um novo patamar de insalubridade do ar, conforme dados da plataforma de monitoramento da fundação suíça IQAir. A qualidade do ar vinha sendo classificada como “insalubre” desde o final de agosto, mas alcançou o nível “muito insalubre” na última semana e “extremamente insalubre” nos dias do evento.

Em fala de abertura do evento, Ministro Carlos Fávaro ressalta Mato Grosso como campeão de produção agrícola e de gado apesar das “dificuldades momentâneas com queimadas e mudanças climática”

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