Pra cada uma que cair, mil de nós vão surgir

por Sônia Barbosa, da TI Guarani do Jaraguá
por Sato do Brasil©
Estamos em luto e o luto só acaba dia 23. Estamos em luta, há 520 anos, e a única coisa que queríamos era não precisar mais lutar. Cansa.
A gente queria a paz da floresta em pé, o frescor dos rios limpos, a vitalidade das flores, folhas e raízes que concedem o alimento. Mas estamos longe disso, e por mais que canse, fisicamente e espiritualmente, não podemos parar de lutar, quem não luta tá morto.
Nossa luta de 520 anos é contra a invasão, a colonização. A luta atual aqui no Jaraguá é pelo embargo definitivo da obra que queriam fazer ao lado da nossa aldeia, a gente quer a mata atlântica em pé, a gente quer que as escolas venham aqui e conheçam a floresta, conheçam nossa cultura, aprendam a preservar. Derrubaram mais de quinhentas árvores, queriam derrubar quatro mil. Não deixamos.
Já derrubaram árvores demais nesses 520 anos. Vejam a cidade de São Paulo: cinza, concretada, sufocada. E o pouco que resta de floresta, querem derrubar. Tantos animais extintos e os que resistem querem exterminar.
por Richard Werá Mirim©
Eu não queria ir pro carnaval. Isso não é festa da minha cultura, não é o tipo de evento que eu vou pra me divertir. Mas estou em luto e em luta, e o carnaval foi uma trincheira da guerra que precisei ocupar junto com outras parentas. Guerreiros não fogem da luta e nessa luta aliados foram conquistados. Missão cumprida, pois vamos dar um passo de cada vez. Se lutas de 520 anos ainda não acabaram, não vamos resolver tudo em um carnaval. Quando olhei a Alessandra Negrini montada, eu, pessoalmente, não vi uma indígena lá. Vi a natureza, vi a floresta, achei ela linda.
Me perguntaram de apropriação cultural, e pra cada povo a apropriação vai ser vista em elementos diferentes. Um petyngua no bloco na mão de um Juruá ou até mesmo na minha, me ofenderia demais, seria apropriação mais que cultural, espiritual; porque no nosso nhandereko cultura e espiritualidade não são coisas definidas separadamente. Mas meus olhos não se ofenderam, e meu espírito não se entristeceu ao ver a Alessandra Negrini do jeito que ela estava.
Francio de Holanda / acervo Acadêmicos do Baixo Augusta
Não vi nenhum adereço indígena, só o grafismo, feito por um indígena. Grafismo não é fantasia. As fantasias ofendem, porque muitas vezes se tornam uma vergonha mesmo. Um grafismo não é de forma alguma uma vergonha. Quem tem isso na sua cultura não pode se envergonhar de estar pintado, e quem tem a honra de ser pintado por alguém que sabe o que está fazendo não deve se envergonhar também. Porque o jenipapo fica dias na nossa pele e conversa com o nosso espírito, quem se envergonhar vai ter consequências e aprendizados.
Não temos o desejo de sermos os donos da sabedoria, temos o desejo de proteger a mãe natureza, e parte da nossa sabedoria é estratégica no momento atual precisa ser compartilhada.
por Sato do Brasil©
Nas aldeias em vários povos se abriram aos não indígenas, nossos pajés já rezaram pra não indígenas, pois um humano com dom de cura, se for sua missão não pode negar a cura a quem precisa. Indígenas que não sabem ou sabiam suas origens foram acolhidos e fortalecidos em seus processos de retomada.
Se banalizarem o que é a apropriação cultural, no limite os parentes que trabalham e sobrevivem da cultura, as comunidades que resistem e existem por que isso as segura, vão ser proibidas porque vão falar em apropriação cultural.
Os parentes não iam poder vender os artesanatos, porque se usarem é apropriação cultural. Os parentes não poderiam pintar as pessoas não indígenas nunca, não poderiam rezar em não indígenas. As aldeias que recebem tanto juruá quanto indígenas em retomada, iriam se fechar, já que estaríamos proibidos de compartilhar. Aí terminam de matar a gente e pronto, mas a gente não vai morrer sozinho, porque o céu vai cair em todo mundo.
Nossos inimigos atuais na luta aqui no Jaraguá são o dono da AmBev, o Itaú, e os outros acionistas da construtora tenda, que estão fazendo o que podem pra botar a gente na cadeia por defender a natureza, e fazendo de tudo pra exterminar nosso povo.
Estão escrevendo um montão de coisas, muitas pessoas atacando as lideranças indígenas que foram ao bloco, mas isso eu não tenho tempo nem dados móveis pra ficar lendo tudo. A escritura que me preocupa é a que o policial armado de fuzil trouxe aqui na ocupação com meu nome escrito, e de outros, em um processo de mais de 400 páginas por estarmos em luta contra a construtora Tenda.
Reclamaram comigo, porque eu não levei uma faixa escrito demarcação já. Estamos aqui segurando uma ocupação, que precisa de alimentos, que precisa de cobertores, lonas, água potável, lanternas pros xondaro fazerem ronda a noite. O que vocês fariam? Comprariam o necessário e urgente ou o pano e tinta pra pintar faixa? A gente recebe doações, mas a gente se segura coletivamente. Estamos aqui e precisamos também tirar dos nossos próprios bolsos pra resistir, porque só as doações não seguram.
Se nos trouxessem pano e tinta, vontade de pintar faixa não faltava, ideias também não.
Mas um dos atrasos do mundo é que as pessoas não perceberam que não precisamos de uma faixa escrito demarcação já, pois nossos corpos e nossas vidas também já representam essa luta.
Acusaram a gente de não falar com a base. Aonde está a base? Aqui em São Paulo uma parte da base que está organizada e reunida está aqui na ocupação. Aqui conversamos e temos reuniões, e não só com guaranis, recebemos parentes dos povos Tupinambá, Wapichama, o sobrinho de Raoni Kaiapó. Alguns parentes de outras etnias às vezes não conseguem estar com a gente, mas nos contatam e nos apoiam, não estamos sozinhos. Sem rezador Kaiowá, o rezo deles chegou aqui por meio de um de nossos pajés, porque podemos não estar juntos no mesmo espaço, mas estamos lutando e rezando juntos.
E desde o começo estamos pedindo apoio de todos, ao mesmo tempo aflitos que abertos demais entram também os mal intencionados.
A gente não vai pra casa de cada pessoa que se diz base, a base se reúne em algum lugar. E quem não esteve aqui precisa rezar mais e não se estressar por coisas que não tiveram disponibilidade de participar, provavelmente estavam em outras lutas, mas se não puderam estar aqui, o que se ganha desarticulando e difamando o que aqui acontece?
O que ganham expondo outros indígenas para o Juruá Kuery? Quem vai usar isso são os que querem nossa destruição. Mas nhanderu é bom. Porque no carnaval adentramos um terreno minado, mas hoje já começamos a colher frutos.
por Favio Florido© – Bloco Acadêmicos do Baixo Augusta
Tem pessoas que não conseguem ver, mas atrás de mim e de cada parenta que estavam ali comigo haviam mil guerreiras atrás.
Hoje por causa de articulações que ocorreram no bloco conseguimos fazer nossa petição com as bandeiras da ocupação saísse de três mil assinaturas pra 30 mil, e é só o começo.
Hoje Bruno Covas teve até que bloquear os comentários em suas redes de tanto que foi cobrado pelos crimes ambientais que estão ocorrendo aqui, mas o governo deixa passar batido. Isso foi hoje, vamos com força e fé avançar, e chegar no amanhã. Que o coração de parentes que atacam parentes em luta seja tocado por Nhanderu. E aguyjevete pra quem luta!
por Sato do Brasil©

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