Povo sem carne: um modelo econômico perverso

Não importa se o brasileiro está comendo menos carne. O que interessa ao modelo econômico é se o empresário está ganhando mais

Renê Gardim(*) 

Uma demanda internacional mais agressiva faz com que as empresas prefiram exportar a vender a um preço mais baixo no mercado interno.  Essa lógica perversa do capitalismo é um dos principais motivos pelo qual grande parte dos brasileiros está abandonando o salutar costume de comer carne.

Tanto que a previsão de 2021 é fecharmos o ano com um consumo de 26,4 quilos por habitante/ano, depois de batermos o recorde de 96,7 quilos por pessoa em 2013.

Os dados são da Conab (Companhia Nacional de Abastecimento), órgão vinculado ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento. No ano passado, foram 36 quilos per capita.

Enquanto isso, nossas vendas externas de carne bovina continuam muito bem, obrigado!

De janeiro a julho deste ano, as exportações totais registraram incremento de 8,5% no faturamento, que fechou o período em US$ 5 bilhões ante US$ 4,6 bilhões registrado nos sete primeiros meses de 2020. Um detalhe: o volume de carne exportado subiu 3,3%.

Ou seja, os preços internacionais estão mais atrativos. Aplica-se aí a lógica mercantilista. Não importa se o brasileiro está comendo menos carne. O que interessa é se o empresário está ganhando mais.

No acumulado dos sete meses deste ano, os embarques para os Estados Unidos cresceram 93%, passando de 27.512 toneladas para 53.123 toneladas. Outros destinos que registraram aumento do volume foram Chile, com 48.789 toneladas, Filipinas, com 32.642 toneladas, e Emirados Árabes Unidos, com 25.349 toneladas.

E, no ano passado, não foi diferente. As exportações de carne bovina in natura e processada do país ficaram em 2,016 milhões de toneladas e renderam US$ 8,4 bilhões aos frigoríficos, segundo dados da Secretaria de Comércio Exterior (Secex).

E vamos além. Enquanto 110 milhões de brasileiros vivem em situação de insegurança alimentar e 20 milhões passam fome e não têm ao menos uma refeição regular todos os dias, os quatro maiores frigoríficos do país (Marfrig, BRF, Minerva e JBS) nadam de braçada.

Para se ter uma ideia mais exata, no dia 29 de setembro, aquele mesmo dia em que o jornal Extra, do Rio de Janeiro, estampou em sua capa a foto de jovens, pretos e pobres, vasculhando um caminhão de carcaça putrefata de bois para recolherem algum alimento para si e para a família, esses frigoríficos registravam uma valorização anual, considerando o valor de mercado dessas empresas, de mais de R$ 60 bilhões.

A mídia, no dia seguinte, estampava que os frigoríficos foram as maiores altas da Bolsa de Valores (Ibovespa) em setembro, e analistas destacavam oportunidades internacionais, em especial para JBS e Minerva.

Povo sem carne: um modelo econômico perverso

E é bom lembrar que a China, que responde por cerca de 40% das exportações brasileiras de carnes, havia suspendido as importações de carne bovina após dois casos atípicos do “mal da vaca louca” no Brasil. Hoje, os chineses já ensaiam a retomada das compras da carne tupiniquim.

O efeito da medida chinesa foi que, no interior de São Paulo, o valor médio da arroba do boi caiu 13% entre agosto e meados de outubro. Mas, nesse período, o preço da carne desossada no atacado paulista recuou menos de 1%. E isso aconteceu em todo o país. De acordo com o Cepea – Centro de Estudos Avançados em Economia Aplicada da ESALQ/USP, em outubro, o recuo no preço da carne bovina para o produtor foi de 11,83%.

Se compararmos com o mesmo período de 2020, a arroba do boi (15 quilos) caiu 6,7%, indo de R$ 275,6 para R$ 257,1 no último dia 29, sem que os preços caíssem nos açougues e supermercados. Uma bela forma de se criar mais excedentes para a exportação, pois com preços altos, os consumidores não compram.

Acontece também que, diante da redução dos embarques de carnes bovinas para a China, os frigoríficos reduziram os abates e, consequentemente, as compras dos produtores. Mas não há refresco para o varejo. Ou seja, abastecer o mercado interno nunca foi política dos frigoríficos.

Tanto que já se fala em um novo “piso” nacional para os preços da carne bovina. Traduzindo, o mercado já atua com a certeza de que os preços continuarão altos. E não apenas para a carne bovina, como o brasileiro sabe muito bem.

(*)Renê Gardim é jornalista há 36 anos. Atuou na “Folha de Londrina”, “Jornal de Londrina” e RBS. Foi editor de economia e agronegócio no DCI.

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