Por que precisamos ouvir a nova música do Aláfia?

 

Em meio a um turbilhão de sentimentos e dores que a democracia tem sofrido, a banda Aláfia traz um suspiro de alívio em sua nova música “canção para nós”, que marca um novo ponto da carreira de nove anos do coletivo. Como toda boa memória sempre traz uma trilha, o momento que o Brasil está passando pede uma música que transpareça o que mais precisamos: o afeto.

 

O afeto é nosso prato/

O afeto é nosso serviço/

Um motivo vitalício/

Até o último ato/

 

O refrão da música que foi composta pelo vocalista e guitarrista, Eduardo Brechó, ou só Brechó, é um ponto forte e que precisa ser analisado em tempos que o diálogo nos leva a discussão tão polarizadas. Mas não só isso. Se pensarmos que se tivéssemos, em 2014, usado nosso afeto e empatia para dialogar com pessoas de opiniões contrárias, talvez Jair Bolsonaro não estivesse no poder. “É preciso compreender primeiro que nem todas pessoas que votaram no atual presidente são ‘ruins’, mas só precisavam tentar um suspiro e algo diferente para recuperar seu emprego ou ter dinheiro pra levar pra casa” é o que diz o cantor da banda Aláfia.

 

O grupo que sempre buscou trazer a ancestralidade e a crítica social em suas letras não fez diferente na nova canção. Marcada por simbolismos, que mostram como a sociedade vem se perdendo aos poucos em discursos rasos e sem raciocínio, tem o objetivo de dialogar com a esperança de um novo tempo de resistência.

 

Caretas que nos perdoem/

Mas já lhes perdoamos/

Seremos livres sem seus calibres/

Entre livros, discos e colibris/

 

Diante do cenário social da legalização da posse de armas em uma das sociedades mais violentas do mundo, aceitar o armamento como algo do cotidiano é abaixar a guarda para uma ação que mais mata do que salva. É preciso lembrar que a polícia que mais mata é a do Brasil. Agora, se pensarmos que o objeto utilizado por eles encontra-se na casa de uma pessoa não compreende as consequências que aquilo traz, é assinar uma lista de obituários sem precedentes. “Preferimos trabalhar com a ideia de não aceitação do armamento no país, ainda que seja constitucional, de nada vale a pena você querer pagar pra ver”, diz Brechó sobre a questão bélica tão presente na letra.

 

Somos colo colírio delírio delícias/

Acordes lídios carícias caminhos de paz/

Polícias já não nos acharão/

Tampouco vícios de ofícios oficiais/

 

Sempre presente, as letras do grupo fortalecem a identidade do povo afro-descendente e de sua ancestralidade diante de uma sociedade que até hoje faz questão de segregar nos mínimos detalhes um povo historicamente marginalizado. Não é uma definição e uma busca fácil, mas em seu clipe a banda retrata e traz o amparo de ancestrais em um momento que o racismo não é só na casa do patrão com a empregada, mas é dentro da universidade, do hospital e da agência de jornalismo. Logo, tanto as cores, quanto o figurino, produzidos por Amanda Paulovic incentivam a esperança de que se os ancestrais conseguiram sobreviver à dura realidade da escravidão e de que hoje é possível vencer os obstáculos da sociedade.

 

De qualquer lote/

De qualquer rota/

De qualquer cota/

De qualquer total/

 

Afeição aos patrícios em crise/

Volte pra base amizade e me avise/

Visualize uma mísera solução/

Situação é difícil mas é possível/

 

Ainda na composição, é preciso dizer que o afeto é um dos principais caminhos que devem ser tomados como base em nossa democracia. É compreensível que nem sempre será possível dialogar com um grupo, mas é preciso nos aproximar e não nos afastar, é preciso resgatar a criança negra que acha que seu cabelo é “ruim” porque está embutida dentro de um grupo social que não compreende que seu cabelo só é crespo ou que seu nariz é normal diante dos mais fininhos. É preciso explicar que a cota não é esmola, mas retratação social para o pagamento de uma dívida que o Estado sempre teve com seu próprio povo.

 

“O Estado lutou para mais para tornar o imigrante seu povo do que ajudar o negro depois da abolição”: é assim que o Aláfia enxerga o que o governo fez com o povo que construiu o que nós chamamos a nação brasileira. Foi desse princípio que surgiu aquilo que chamamos hoje como a síndrome do vira-lata, abandonamos nossas raízes e aprendizados que os ancestrais deixaram em nossa nação para vangloriar e exaltar uma cultura que não faz parte da nossa história nem de nossos costumes.

 

Mas não apenas na letra ou na direção de arte do clipe, a musicalidade do coletivo Aláfia possui uma identidade única que ainda não foi vista em outra banda, não é exaltação, mas reconhecer a proposta de uma produção musical que consegue mesclar tanto o samba soul, quanto o jazz dos anos 70, além de carregar o que sempre trouxeram desde a fundação os sons tradicionais do Candomblé.

Foto:Renato Nascimento

Por fim, o amparo sonoro e social que o Aláfia possui da a banda um futuro além daquilo que se espera. No próximo semestre, sem o nome divulgado ainda, o coletivo irá lançar seu novo disco sem abandonar as temáticas da cultura afro brasileira, mas com um som mistificado e inspirado em samba soul para marcar o novo momento que o grupo está vivendo. Embora tenha uma jornada pela frente, o Aláfia sabe a que veio e possui conteúdo para retratar. No final do clipe quando todos estão à mesa comendo e rindo um com os outros traz a proposta do novo som e do que esperam da sociedade, pessoas unidas, independente de sua cor e amparadas por aquilo que conhecemos como esperança de fato. Confira o clipe abaixo:

 

 

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