Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Em março de 2019, na ocasião de visita oficial aos EUA, o presidente Jair Bolsonaro deixou claro aquele que é o seu principal projeto, desde o início: “O Brasil não é um terreno aberto onde nós iremos construir coisas para o nosso povo. Nós temos que desconstruir muita coisa.”
O objetivo é destruir o contrato social e político instituído pela carta de 1988.
Por quase 30 anos, Bolsonaro exerceu mandato legislativo, de acordo com as regras do jogo estipuladas por esse mesmo contrato social e político. Mas seria errado dizer que o deputado Bolsonaro pertencia ao sistema. Sempre foi um “outsider da democracia”, na feliz formulação do historiador Daniel Pinha. Ignorava os protocolos, não relatava projetos. Usava o púlpito parlamentar para elogiar a ditadura e atacar a Constituição que havia jurado defender. Negava a democracia que lhe garantia o mandato e a imunidade parlamentar para manifestação de opinião.
Olhando daqui, parece previsível que quando a República de 1988 começou a desmoronar, em junho de 2013, Jair Bolsonaro estava pronto para se apropriar dos espólios e reinar sobre as cinzas. De alguma forma, ele era o mais “qualificado” a fazê-lo.
Parece previsível hoje. Não era nada previsível na época. É bem mais fácil prever o passado do que prever o futuro.
Fato é que, sim, o deputado Jair Bolsonaro negava a democracia. O presidente Jair Bolsonaro subiu a rampa do Planalto para destruir todos os feitos dessa mesma democracia.
Infelizmente, não dá pra dizer que ele esteja falhando no propósito.
Talvez nenhuma política pública idealizada e efetivada pelo pacto de 1988 tenha sido mais atacada pelo projeto bolsonarista que o ENEM. Não é coincidência.
Explico, pedindo licença ao leitor e à leitora para rápida digressão nostálgica, memória pessoal mesmo.
Faço parte da geração que chegou à vida adulta por volta de 2004, 2005, 2006, no apogeu da IV República, que por muito tempo chamamos de “Nova República”.
Nenhum governo cumpriu mais os preceitos da carta de 1988 que os governos petistas.
Naqueles tempos, a promessa de ascensão pelo trabalho e pelos estudos fazia sentido. Promessa que costumava embalar a infância das crianças pobres, talvez das não tão pobres também.
Quem nunca ouviu a mãe falar, por vezes gritar com a chinela em punho: “Vai estudar pra não puxar carroça quando crescer”. Minha mãe ainda fazia mais: prendia as provas de boa nota (acima de 9,0, que fique claro) no imã da geladeira. Sucesso era pra ser ostentado mesmo. Deve ser isso que chamam de meritocracia.
As notas baixas não ficavam impune. Rendiam castigo.
Enfim…
A partir de 2004, com o “Novo ENEM”, e depois de 2010, com a criação do SISU, o ENEM passou a ser a representação da tal promessa da ascensão social pelos estudos e pelo trabalho. Ponte de acesso ao ensino universitário, em país de forte tradição bacharelesca, onde o diploma superior é signo de distinção social.
Os dias do ENEM eram dias de clima festivo. Manhãzinha de domingo e as ruas cheias de jovens. Os atrasados correndo, o portão fechando, lentamente. Modo emoção ligado. Os que não conseguiam passar se agarravam nas grades e choravam. Em volta, sempre tinha um espírito de porco pra rir da desgraça alheia,
O ENEM era um rito! O mais importante rito do sistema educacional brasileiro.
Participei de dois ENEMs como estudante. Em 2003 e em 2004. Estive envolvido com outros tantos como professor de cursinho e de ensino médio.
Digo com absoluta clareza: o ENEM é o grande simbolo da esperança e da ambição da minha geração. Era a menina dos olhos do reformismo petista, mais até que o Bolsa Família.
“Estudar para o ENEM, entrar na universidade, me formar, arrumar um bom emprego. Comprar carro, casa, viajar. Vestir umas roupas maneiras e ficar mais bonito”.
Certeza de que o leitor e a leitora que contam mais de 30 anos sabem exatamente do que estou falando. Quase vejo daqui o balançar positivo de cabeça.
Desde 2019 que o ENEM vem sendo desmontado, desmoralizado. Vazamento de prova, problemas com a gráfica, retirada da gratuidade para estudantes em condição de vulnerabilidade, manipulação ideológica das questões.
Em 2021, o ENEM tem o menor número de inscritos em 16 anos. Os jovens pobres que estão hoje saindo do ensino médio não têm mais tantos motivos pra sonhar com o ENEM. Vivem em país que não respeita a cultura, a ciência, que precariza o trabalho.
Pra essa geração, a promessa de ascensão social pelo trabalho e pelos estudos parece não fazer mais sentido.
Ao destruir o ENEM, o bolsonarismo, sob aplausos de 1/4 da população (assustador!), destroi os valores de 1988, destroi a promessa que moveu minha geração.
Destroi também a democracia, pois democracia não se faz apenas de direitos formais. Se faz de sonhos, de projetos de futuro, de ambições.
Jair Bolsonaro está vencendo. Basta saber até quando e se sobrará algo pra reconstruir.
Uma resposta
Excelente (e triste) resumo, professor.