Por Tchê Tchê, no The Players Tribune em parceria com o Observatório da Discriminação Racial no Futebol
Irmão, eu carrego na alma e no corpo os dois maiores ícones da luta contra o racismo e vou pegar emprestadas as palavras deles, vou juntar elas, do jeito que sempre reverberaram em mim, assim, unidas, pra te dizer uma parada.
Eu tenho um sonho.
É fundamental sonhar.
Eu sonho que meus filhos, meus netos, meus bisnetos não sejam julgados pela cor da pele deles como meu bisavô foi, meu avô também, meu pai é e eu sou. Só isso, sacou?
“Só.”
Dar poder, oportunidade, direitos e reparação pro povo preto não significa vingança. Significa ser um país melhor, humano, decente.
– Tchê Tchê
Então… Se fosse simples como deveria ser, a gente não estaria lutando há tanto tempo. E se com luta a realidade já é ruim, péssima, imagina sem? Tem uma galera que acha ruim dizer “luta”. Que é agressivo. Mas é luta, sim. E às vezes precisa ser guerra. Porque numa sociedade estruturada na exploração de corpos pretos escravizados, torturados e violentados de todas as formas, todo santo dia a gente precisa lutar pra ser reconhecido como ser humano. A gente luta pra ter o direito de existir, o direito de ser, o direito de sonhar e habitar esse planeta onde eu e você encarnamos juntos. É diferente de sonhar ou lutar pra ir pra Disney, sei lá. Cê entende o que eu tô dizendo?
É isso, parça! As palavras são do Martin Luther King e do Malcolm X. Eu acrescentei umas minhas e tamo aí. Eu sou eles, eles são eu. Me vejo demais nesses caras. Acho que as duas personalidades, tão diferentes entre si, moram em mim.
A firmeza doce e pacífica do Martin me ensina a reagir ao racismo com palavras, atitudes e exemplos, nunca com porrada. A agressividade do Malcom mexe com a minha autoestima, me encoraja. Por isso tatuei ele na minha perna direita e o Doutor King na esquerda.
Fiz essas duas tattoos depois de sofrer uma ofensa racista na Ucrânia, quando joguei lá. Elas me ajudaram a ficar de pé. Olha pra mim, mano. Eu tô de pé na sua frente. Tá vendo?
Juntando os rostos do Malcom e do Martin, pra sempre marcados em mim, você lê STAY STRONG. “Mantenha-se forte”. É o que eles me dizem todo dia de manhã. Eu ouço, me fortaleço e vou pra cima, que essa luta exige coragem e o corre é louco.
Mas o que me revolta é a parte do sonho. Eu sinto assim, ó: quando a gente vem da periferia, parece que o tempo todo, em tudo quanto é lugar, querem te impedir de sonhar. E nem é consciente, tá ligado? O preconceito tá no DNA das pessoas, elas nem se dão conta.
Eu nasci e me criei em Guaianases, zona leste de São Paulo. Volto direto lá. E direto eu vejo meninas e meninos pretos passando pelo mesmo tipo de coisa que eu passei. Na quebrada mesmo e fora dela também. Galera na escola chama de feio, de fedido, cabelo disso, cabelo daquilo, aí na hora de uma brincadeira de roda tem que dar as mãos e não querem dar as mãos pra gente…
Cara, molequinho preto entra numa loja, tipo só pra comprar uma linha de costura que a mãe pediu, e aí fica todo mundo de olho achando que ele vai roubar alguma coisa… Pô, mano, como é que uma criança que convive com esse nível de violência repetida, massacrante, vai ter força pra sonhar? Como ela vai acreditar que a vida pode ser diferente? Como ela vai sacar que o que dizem pra ela — “ah, não liga, é assim mesmo, se acostuma” — na verdade é horrível e não tem que se acostumar coisa nenhuma?
Nessas horas eu sou o Malcom, eu sou o Martin e também sou outro doutor, o Sócrates. Pô, o cara comandou a Democracia Corinthiana em plena ditadura militar. Sabe o peso disso? A coragem? Era uma baita duma afronta. Mas ele estava do lado certo. E lutar contra o racismo é o único lado certo, mano. Não tem outro. Ninguém pode fugir dessa luta.
Quando mataram o George Floyd nos Estados Unidos, eu fiquei estarrecido. O vídeo era chocante, acabou comigo. Só que quantos George Floyd não existiram no Brasil? Nas redes sociais tinha gente minimizando e justificando: “ah, mas…”
Não tem “mas”, irmão.
Lutar contra o racismo é o único lado certo.
– Tchê Tchê
Um homem negro foi abordado porque era negro, estrangulado porque era negro, não teve seus pedidos de socorro atendidos porque era negro. Nessa mesma época tivemos o caso do João Pedro, 14 anos de idade, que dentro de casa teve seus sonhos interrompidos também. Procurar justificativa pra isso é nojento. Pô, agora é o Malcom falando dentro de mim, tá vendo… Beleza, tudo certo. Às vezes a desesperança é tão grande que eu tenho dificuldade de acreditar no Martin, de que a violência a gente combate com amor. Mas eu tô ligado que isso é importante também.
Eu nunca quis ser uma voz contra o racismo. Eu queria era falar de outras coisas, queria não precisar falar disso. Mas precisa. E se precisa eu falo, porque eu tenho voz e tô numa posição que eu sei que ela vai ser ouvida.
Quero passar um bom exemplo pras crianças. Lá de onde eu vim elas olham pra mim com admiração e esperança, como um dia eu olhei pra um Lázaro Ramos, pra um Mano Brown. Nesse ponto, o mundo do futebol é até meio estranho, meio perdido. Tem jogador preto que prefere não falar, não se posicionar. Eu entendo. Essa coisa de consciência racial é difícil mesmo. Eu demorei um pouco também, mano.
Vou te dizer um negócio que há muito tempo ficou evidente pra mim: não importa o tanto de dinheiro que você ganha, não importa se você é famoso, não importa que tem uma torcida gigante te aplaudindo (quando você acerta). Não importa. Você é preto e o racismo sempre vai estar na sua cola, tio!
Outro dia eu precisei ir no hospital, um pessoal me reconheceu e veio tirar foto e pedir autógrafo. Aí uma senhora se aproxima e me pergunta com desdém: “Você é jogador, né?”. Como se eu não pudesse ser outra coisa. Como se pra estar naquele hospital sendo um homem preto só sendo jogador de futebol. Eu não podia ser um médico, por exemplo. Um advogado. Um arquiteto. Tá entendendo, mano? O racismo é um bagulho capaz de machucar a gente até numa pergunta de três, quatro palavras num saguão de hospital.
Eu sei que sou uma exceção. Pelo futebol, eu pude sonhar e realizar meus sonhos. Mas eu não quero ser exceção! Eu quero que toda pretinha e todo pretinho das Guaianases do Brasil inteiro tenham uma vida boa, digna, com paz, amor e liberdade. 4P: Poder Para o Povo Preto, outra tatuagem que eu tenho.
Dar poder, oportunidade, direitos e reparação pro povo preto não significa vingança. Significa ser um país melhor, humano, decente. Quando é que vão entender isso? Muitas vezes eu acho que nunca.
O próprio fato de eu estar aqui ocupando esse espaço no Mês da Consciência Negra pra falar de racismo é a prova de que estamos longe de acabar com o racismo. Talvez ele nunca acabe. Será?
Bom, eu acho que não resolve muito ficar brisando. Ou só dizendo ser antirracista. Tem que levantar e lutar, mano. Como dizia outro doutor, o Che, “sonha e serás livre de espírito, luta e serás livre na vida”.
Eu continuo sonhando.
Eu continuo na luta.
4P.
Conheça e apoie o trabalho do Observatório da Discriminação Racial no Futebol. O texto Poder Para o Povo Preto foi publicado originalmente em Poder Para o Povo Preto por Tchê Tchê | Consciência Negra (theplayerstribune.com)
Uma resposta
PELO DIREITO DO BRASILEIRO DE NÃO GOSTAR DE FUTEBOL!!! BRASIL É UM PAÍS NÃO UM TIME DE FUTEBOL. NÃO AO RACISMO NO FUTEBOL MAS TAMBÉM NÃO AO PRECONCEITO CONTRA QUEM NÃO CURTE FUTEBOL!!! QUEM NÃO CURTE FUTEBOL TAMBÉM MERECE SE DIVERTIR E SE SOCIABILIZAR!!! JUNTE-SE A ESTA LUTA! #futebolnãoéomeupaís.