Periferia segue sangrando

Em Periferia segue sangrando, Dinha retoma o Café com Muriçoca dos domingos e traz notícias do gueto, enquanto reflete sobre saúde mental e arte em tempos de acirramento neoliberal .
Praça Igor Rocha Ramos
Em memória de Igor Rocha Ramos

Por: Dinha

Na muralha, em pé, mais um cidadão José
Servindo o Estado, um PM bom
Passa fome, metido a Charles Bronson.

Racionais MC’s – Diário de um detento

E pra não dizerem que não falei de flores, anota aí: a quebrada aqui acabou de ganhar praça nova, ela se chama Praça Igor Rocha Ramos. Em abril de 2020, Igor, menino de 16 anos, saiu pra comprar pão e não voltou. Um policial militar, um passa-fome qualquer, metido a Charles Bronson, o assassinou em plena luz do dia. (…) Igor agora renasce como um lugar de cultivo de plantas e de amores, como um memorial de resistência ao projeto de eliminação da população negra de nosso país. Igor renasce como símbolo do amor das mães e da luta por um mundo mais justo.

Faz um tempo que a gente não troca ideia, e sinto dizer que a Periferia segue sangrando. Da última vez que nos falamos foi quando o Sr. Juíz-negro-é-tudo-igual se recusou a inocentar o rapaz Felipe Cirilo, jovem trabalhador negro, que tinha em mãos todas as provas de que era inocente, mas elas eram ignoradas por causa de um reconhecimento ilegal, feito via fotos de redes sociais. Sobre isso eu tenho boas notícias! Enfim, depois de meses, Felipe teve a prisão revogada. Alguém ouviu, enfim, a voz da razão.

Entretanto… e sempre tem um porém… nesse intervalo, meu amigo Dieguinho, mais conhecido como MC Di, foi preso –  também reconhecido de forma ilegal, via redes sociais, e também sem ter cometido crime algum, além de ter nascido preto e pobre nesse país racista infeliz. 

Sim, a Periferia segue sangrando…

Diego, como Felipe e muitos outros, é também apenas mais um rapaz trabalhador latinoamericano – que trampa há dez anos na mesma firma, joga futebol de várzea, canta sua música, é querido e amado por sua família, suas amizades e fãs. Novamente, o senhor de engenho, cujos olhos enxergam muito bem, se traveste de justiça para punir meninos negros e suas famílias, retirando sua liberdade, quando não suas vidas…

Liberdade para MC Di
Liberdade para MC Di

Eu sei… essa conversa aqui tá mais melancólica que fim de baile com Tim Maia… Mas, se o mundo inteiro pudesse me ouvir, eu diria que tem dias que de noite é assim mesmo. Vou ser mais engraçadinha quando chegar o verão.

Mas, também, né? Todo mundo tem limite. O do meu bom humor esbarrou nas notícias que eu não leio – sobre estupros durante partos, fome e pele de frango sendo vendida nos supermercados, assassinatos em nome de um suposto mito, o amigo da minha filha sendo preso, abandonado e morto – e a família que mal pode se sustentar tendo que fazer vaquinha pra enterrar o corpo de Gabriel com alguma dignidade, pois o Estado que o matou se recusou a fazer o traslado.

Pra piorar, minha saúde mental é fraca! é fraca!

Todo dia eu acordo me questionando se essa vida presta e se eu mesma presto pra alguma coisa. Me pergunto se o que faço é suficiente, porque minha militância é reduzida pela minha maternidade, que é reduzida pelo meu trabalho, que é reduzido pelos cuidados básicos que me propus a ter comigo mesma, que são reduzidos pelo tempo. Só a arte sobra, quase sem limitações. Ela me salva nesses dias em que sei que nem eu nem a vida prestamos. Mas não salva o suficiente, e não tem humor que resista à ausência de autoestima e à politicagem.

Minha cota de alegria também acaba fácil quando tentam transformar arte em negócio, quando o liberalismo se infiltra tão fundo, que até o amor tem que ser monetizado, e a militância é medida em termos de likes e visualizações. 

Acontece que tenho consciência do meu valor – e ele não é monetário.

Por isso volto aqui pra vocês, pra nossos papos de domingo, dessa vez sem o compromisso de dar boas risadas – embora elas sejam bem vindas.

E pra não dizerem que não falei de flores, anota aí: a quebrada aqui acabou de ganhar praça nova, ela se chama Praça Igor Rocha Ramos. Em abril de 2020, Igor, menino de 16 anos, saiu pra comprar pão e não voltou. Um policial militar, um passa-fome qualquer, metido a Charles Bronson, o assassinou em plena luz do dia. 

Graças aos esforços da mãe, de gente amiga, de lideranças comunitárias e do apoio da Rede de Proteção e Resistência contra o Genocídio, Igor agora renasce como um lugar de cultivo de plantas e de amores, como um memorial de resistência ao projeto de eliminação da população negra de nosso país. Igor renasce como símbolo do amor das mães e da luta por um mundo mais justo.

A periferia segue sangrando e o texto de hoje não tem risada não. Mas tem um tanto de esperança bem guardada debaixo do nosso senso de irmandade, de nosso desejo de paz, de nossa luta por justiça, nossa insistência no amor e no direito à vida e à liberdade.

Vida longa para nossos meninos e meninas.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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