PEIXE FRESCO COM FARINHA FINA.

Há uma flor, fruto aprimorado pelas etnias xinguanas, o pequi, que prenuncia a fartura da vida em equilíbrio. Coisas lindas se anunciam nesta época. Crianças correm atrás de flores como se fossem borboletas, brinquedos e brincadeiras inventam-se na época da flor de pequi. O olhar às vezes fala de coisas que não se quer acreditar.

Brincar deve ser uma forma de ensaiar a vida, arriscar atitudes. Tantas crianças correm na aldeia, uma trilha sonora de pequenos gritos eufóricos, risadas breves e um batuque oco de chinelos havaianas correndo no terreiro. Pressinto, nessa hora, que Pindorama deveria ser uma alegria quando os patrícios aqui desembarcaram. Devem ter visto tantos prazeres que pensaram estar no éden. De fato, o humano impressiona quando o ambiente e a cura coincidem. 

Anuncia-se o fim do inverno e as saudosas chuvas ainda estão longe, recolhem-se os rios denunciando os tracajás, jacarés e capivaras nas margens. Como uma língua longa, o rio Xingu começa a anunciar suas rasuras e praias de areia fina, desertas com ventos de aprazia, como dentes em uma boca ampla que abriga muitos sabores e apetites. Os peixes, nas águas em abundância, saciam pescadores indígenas de todas as idades. É peixe moqueado, mutap de peixe, é caldo de peixes e a boa farinha branca de mandiocas, de sutil sabor acre, selecionadas em primitivas roças. A mandioca,  romantizo aqui a sacralidade de sua providência, é alimento fundamental entre os povos indígenas e todos excluídos que na humanidade persistem.

 

O que de fato pulsa quando o coração bombeia ao brincar ainda é cedo para se afirmar. Ousa o coração pulsar sangue, as trocas gasosas, condução de elementos que do alimento advêm. Como uma floresta virgem e seus rios, o corpo da gente vive bem e em sossego quando, lúcido, alimenta-se e  se movimenta, sem tanto e tudo que o mercado coloca dia a dia em nosso prato.

Grande troca de saberes ocorre em ação desenvolvida para exames, diálogos, análises e diagnósticos da população local, pesquisa ação em dislipidemia executada  pela Universidade Federal de São Paulo, o Projeto Xingu, integrando médicos, enfermeiros, nutricionistas, alunos e profissionais da saúde. As mulheres indígenas Kawaiwete mostram seu refinado conhecimento da culinária tradicional, que em grande parte corrobora para os bons índices de saúde na comunidade e os  sorrisos largos na população.

Assim como a comunidade expõe seus hábitos de preparo dos alimentos tradicionais, também a equipe multidisciplinar prepara alimentos de nossa tradição ocidental e orienta a comunidade sobre o uso do sal, açúcar e óleo, alertando para o grave risco do uso exagerado desses produtos.

São tantos os sabores e saberes que separam saúde e doença, fronteiras muitas vezes mascaradas nas prateleiras de supermercados e vendas Brasil afora. São tantos também os alimentos da terra, de entranhas seculares de antigos preparos e poderes.

Em breves belos dias vi um país possível pairando no ar seco, tão feliz, tão só, reluzente de um lugar que há graça entre sertão e bem querer, amenos cuidados, determinação em uma nação que somos. O bom prato constitui-se num ato de resistência ao desenfreado capitalismo da industrialização dos alimentos, ao avanço do diabetes, ao fim das brincadeiras nas aldeias.

 

*imagens por Helio Carlos Mello© – acervo Projeto Xingu/UNIFESP.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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