Por Gilvander Moreira1
Secularmente, a terra vem sendo aprisionada pelas forças e estruturas do capital que, em um processo avassalador, avança de forma ilimitada sobre o Campo e a Cidade. Karl Marx, Boaventura Sousa, Istvan Mèszáros e tantos outros teóricos da filosofia e da sociologia críticas nos ajudam a elucidar a opressão de classe que impõe de forma avassaladora a redução da terra a mercadoria, a partir da propriedade privada capitalista da terra. Entretanto, a luta pela terra pode ser uma força mobilizadora de grande intensidade na luta dos Movimentos Sociais territoriais. Educação do/no/a partir de Campo, considerando o saber camponês, ajuda no processo de reconhecimento das diferenças, o que gera identidades libertadoras e desperta paixão e compromisso com lutas de afirmação no/pelo território. Isso acontece nos Movimentos Populares do Campo. Conforme formulação de Paulo Freire, na obra Pedagogia do Oprimido (2005), os excluídos e oprimidos são submetidos à ‘invasão cultural’, ao ‘silenciamento de sua palavra’ e à constante desumanização.
A Pedagogia do Oprimido, que não pode ser teorizada e praticada pelos opressores, é instrumento para a transformação e emancipação na direção de “ser mais” (FREIRE, 2005, p. 86). Para Freire, portanto, é necessário que aqueles envolvidos com as lutas populares demonstrem o real conceito de educação popular como algo realizado pelo povo sofrido como uma ‘ação educadora emancipatória’, como prática da liberdade, em linguagem freiriana. A ‘ação educadora emancipatória’ é um dos conceitos que sustenta teoricamente nossa perspectiva que busca reconhecer a existência de pedagogia de emancipação humana na luta pela terra.
Assim como na pedagogia popular de Paulo Freire não se refere a analfabeto, mas a alfabetizando, na luta pela terra, quem dela participa deixa se ser sem-terra, um mero injustiçado e explorado, e passa a ser Sem Terra, isto é, sujeito protagonista de uma história de emancipação. No Campo e na Cidade, a luta pela terra e a educação emancipatória são inseparáveis. Toda luta pela terra deve ser efetivada de forma que leve à emancipação humana, social, política, econômica, cultural, ecológica e religiosa. A própria luta pela terra pode ser uma pedagogia de emancipação humana que acontece no desenrolar de si mesma. Muitas vezes, se ingressa na luta pela terra por necessidade – “por nicissidade”, como muitos Sem Terra e Sem Teto dizem – e por não tolerar mais a exploração capitalista realizada no latifúndio pelo latifundiário ou na cidade sob regime da especulação imobiliária. A contradição da exploração inocula o gérmen da indignação e da rebelião para subverter a ordem estabelecida opressora. O primeiro objetivo de quem se engaja na luta pela terra, muitas vezes, é conseguir um pedacinho de terra para produzir o necessário para viver em paz e/ou uma moradia adequada, mas com o desenrolar da luta, a consciência vai se transformando no calor das lutas concretas. A luta educa e quem luta educa e é educado também!
Não é revolucionário lutar pela terra e ao mesmo tempo considerar o ‘agronegocinho’ como objetivo a ser conquistado, pois seria recair nas contradições do economicismo. O critério principal na hora de discernir o que produzir na terra conquistada não deve ser o que é mais rentável, mas o que – e como – viabiliza vida para o campesinato, para toda a sociedade e o que garante condições objetivas de vida para as futuras gerações.
A luta pela terra está viabilizando apenas o progresso das famílias assentadas ou está sendo alavanca de transformação social tomando-se por base a classe trabalhadora camponesa? A emancipação humana, social e política passa pela produção do ser humano como sujeito que exercita-se em liberdade e possui força e luz própria capaz de viver, conviver, agir, se produzir, enfim, de forma autônoma como sujeito. Nesse sentido, Paulo Freire afirma no prefácio da Pedagogia do Oprimido: “Reproduz, em seu plano próprio, a estrutura dinâmica e o movimento dialético do processo histórico de produção do homem. Para o homem, produzir-se é conquistar-se, conquistar sua forma humana. A pedagogia é antropologia” (FREIRE, 2005, p. 13). Pelo seu objetivo primordial que era alfabetizar gerando consciência crítica e emancipatória, Freire enfatiza a reflexão, a discussão e a problematização da realidade vivenciada pelas pessoas oprimidas.
Dialogando com Freire, à luz do materialismo histórico-dialético, entendemos que a produção do ser humano para que conquiste sua forma humana – deixando de ser alienado e superexplorado – exige a pedagogia do oprimido, mas a supera exigindo luta coletiva dos sem-terra, e Sem Terra, e de toda a classe trabalhadora, e do campesinato, pois a ‘conscientização’ pode animar o engajamento na luta, mas o que pode garantir conquistas emancipatórias é a luta coletiva pela terra, pela moradia e por todos os direitos sociais, pois esta luta travada problematiza a realidade opressora vivenciada pelos camponeses sem-terra, pelos sem-teto e pelos explorados pelo sistema do capital e faz parir ideias e práticas emancipatórias. Freire diz que “ninguém liberta ninguém, ninguém se liberta sozinho: os homens se libertam em comunhão” (FREIRE, 2005, p. 58).
Parodiando Freire podemos dizer que nenhum/a camponês/a emancipa outra/o camponês/a, nenhum/a camponês/a se emancipa sozinho: as/os camponesas/camponeses oprimidas/oprimidos se emancipam em comunhão, na luta coletiva. O mesmo podemos dizer dos sem-teto, dos negros em situação análoga à de escravidão, das mulheres violentados pelo machismo e pelo patriarcalismo, das pessoas com orientação homoafetiva, dos/as atingidos/as pelos megaprojetos de mineração etc.
Paulo Freire afirma: “Somente quando os oprimidos descobrem, nitidamente, o opressor, e se engajam na luta organizada por sua libertação, começam a crer em si mesmos, superando, assim, sua “convivência” com o regime opressor. Se esta descoberta não pode ser feita em nível puramente intelectual, mas da ação, o que nos parece fundamental é que esta não se cinja a mero ativismo, mas esteja associada a sério empenho de reflexão, para que seja práxis” (FREIRE, 2005, p. 58-59). Portanto, reflexão e ação, consciência crítica, consciência de classe, luta coletiva, eis a pedagogia de emancipação humana por meio da luta pela terra, dom de Deus e direito de quem nela trabalha e produz para saciar a fome, com responsabilidade social, nutricional, ambiental e geracional.
09/11/2021
Referências
FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido. 47.ª edição. Rio de Janeiro: Edições Paz e Terra, 2005.
Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.
1 – Fora, Rodoanel do “Cemitério dos Escravos”, em Fechos, Pinhões, Santa Luzia, MG! – Vídeo 1 -02/11/21
2 – “Cemitério dos Escravizados, em Santa Luzia/MG, SIM! Rodoanel na RMBH, NÃO!” (Alenice Baeta) Vídeo 2
3 – Missa Afro contra Rodoanel na RMBH, no “Cemitério dos Escravizados”, Santa Luzia, MG–Vídeo 3–2/11/21
4 – Contra Rodoanel na RMBH Missa Afro e Abraço no Cemitério dos escravizados em Santa Luzia/MG -Vídeo 4
5 – Vem aí VALE DE REJEITOS, um Filme de Richardson Pontone. Vale S/A em Itabira. Imperdível! Veja clip
6 – Frei Carlos Mesters, Paulo Freire da Bíblia – Por frei Gilvander – 1º/11/2021
7 – Mineradora Vale S/A insiste em obter Licenciamento para devastar a Serra da Gandarela tb. Por Teca
1 Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente e assessor da CPT/MG, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br – www.twitter.com/gilvanderluis – Facebook: Gilvander Moreira III