Daniela Origuela: de volta ao passado

Chego em casa, sento no sofá e olho o feed de notícias. Ricos sem noção lançam a ‘corrupselfie’. São Paulo volta à fase vermelha da quarentena aos finais de semana. Bolsonaro diz que vacina não foi comprovada cientificamente. Posso voltar a 1992? Ao menos lá tinha o abraço da minha já saudosa avó.

De volta ao passado é uma crônica da jornalista Daniela Origuela que mora na Baixada Santista.

Corredor do supermercado vazio. Uma jovem observa o preço do óleo de soja. Calça cintura alta e um look muito próximo ao que as meninas da minha geração usavam nos anos 90. Imediatamente entrei no túnel do tempo. Encostei o carrinho e, olhando fixamente para os pacotes de feijão, parei em algum dia de 1992.

Zona Noroeste de Santos, região distante da Vila Belmiro de Pelé e do imenso jardim de praia da cidade que abriga o maior porto da América Latina e a maior favela em palafitas do Brasil. Moro no Jardim Castelo, tenho 12 anos e estou no supermercado com a minha avó. Ela reclama do preço de tudo, não sabe se o salário de pensionista será capaz de comprar o que comprou no mês passado. O repositor troca as etiquetas freneticamente. A conversa dos adultos fala de inflação, desemprego, a carne que não podem comprar e Collor. Eu apenas penso no trabalho que tenho de entregar no dia seguinte na escola sobre a epidemia de cólera.

O balão em sépia, que abriu ao lado da minha cabeça, se fecha. Volto a janeiro de 2021, ao corredor do supermercado onde a menina com visual dos anos 90 escolhe o óleo de soja mais barato (oito reais!). Sigo buscando as mercadorias que necessito e, não fosse o smartphone que treme no bolso anunciando mensagens, diria que voltei no tempo três décadas. O preço dos produtos da cesta básica já não é mais o mesmo da semana passada, carne virou artigo de luxo, a senhora da fila reclama do presidente e estamos em meio a uma pandemia. É muita coisa igual, a diferença é que o avanço da tecnologia me permitiu pagar as compras com cartão por aproximação.

Saio do supermercado e sigo para casa caminhando. Crianças empinam pipa na rua. Dois homens parados ao lado de um carrinho de recicláveis conversam sobre a vida. Deixo os passos mais lentos para ouvi-los. Na casa de um estão todos desempregados. “Agora acabou o auxílio. ‘Tamo’ ferrado. Vai todo mundo passar fome sem dinheiro”, diz um deles. “Rapaz, é mesmo. E não tem emprego não. Minha sobrinha conseguiu agora um ‘bico’. Trabalha feito doida pra ganhar 150 reais a cada 15 dias pra sustentar os filhos”.

Chego em casa, sento no sofá e olho o feed de notícias. Ricos sem noção lançam a ‘corrupselfie’. São Paulo volta à fase vermelha da quarentena aos finais de semana. Bolsonaro diz que vacina não foi comprovada cientificamente.

Posso voltar a 1992? Ao menos lá tinha o abraço da minha já saudosa avó.

Crédito: Daniela Origuela

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