Os significados políticos da transição

A tal “judicialização da política” que começou a desestabilizar os governos petistas, que derrubou Dilma e levou Lula à cadeia, agora joga a favor do PT

Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Já era madrugada de 21 de dezembro quando a Câmara dos Deputados aprovou o texto que ficou conhecido como “PEC da Transição”. O projeto já havia sido aprovado no Senado e o desfecho de sua tramitação encerra o ciclo da transição entre governos mais complexa da história recente brasileira. Quero destacar os diversos significados políticos dessa transição, que apontam para o passado recente e sinalizam tendências para os próximos anos.

Ainda no início de novembro, logo nos primeiros dias da transição, se desenhou cenário político bastante curioso.

Bolsonaro saía das urnas derrotado, mas com capital nada irrelevante de mais de 58 milhões de votos, quantidade ainda maior que aquela que decretou sua vitória em 2018. No entanto, o presidente parecia não estar política e emocionalmente preparado para a derrota. Silêncio, tímidas tentativas de alimentar a movimentação golpista que ganhava as ruas e as principais estradas do país.

Bolsonaro tinha duas possibilidades: a primeira era aceitar com altivez a derrota, se apresentando como líder da oposição, já pensando no próximo ciclo eleitoral. A segunda era dobrar a aposta golpista e fazer o que fez de melhor ao longo dos últimos quatro anos: agitar sua base ideológica mais radical, formada, também, por homens armados, civis e militares. Não fez nem uma coisa e nem outra. Permaneceu isolado, quase sempre calado, aparentando abatimento, enquanto via adversários do mesmo campo ideológico piscar para seus seguidores. Aqui tem destaque Hamilton Mourão. Ninguém mais que Mourão quer a destruição política de Bolsonaro. Nem mesmo Lula.

O comportamento errático de Bolsonaro deixa dúvidas se ele terá energia necessária para continuar liderando a parcela da população brasileira que, definitivamente, girou à direita.

Enquanto isso, o Centro Cultural do Banco do Brasil, sede do governo de transição, ofuscava o Palácio do Planalto. Lula ostentou energia, vitalidade e liderança, em performance pública que foi o completo oposto da tristeza e apatia de Bolsonaro.

Na transição, Lula potencializou a vitória que, nas urnas, havia sido apertada. Nas semanas em que o país teve dois presidentes, Lula venceu Bolsonaro por margem muito maior que aquela que havia sido conquistada na eleição. Foi de goleada! Foi nocaute!

O presidente eleito tinha diante de si muitos desafios.

O primeiro já era previsível ainda nos dias da campanha: como acolher os interesses de tantos aliados? Frente ampla é delícia na hora de montar palanque. Para governar, é pedra no sapato. Não tem jeito.

Ficou claro desde o início que o PT não abriria mão da hegemonia, assim como não abrirá mão de lançar candidatura própria em 2026. É esse o recado dado com a nomeação de Haddad para o Ministério da Fazenda. É o segundo cargo de maior visibilidade do governo, perdendo apenas, obviamente, para o presidente da República.

Haddad estará na imprensa todos os dias, falando, dando entrevistas. Se a situação econômica do país melhorar a ponto de impactar positivamente na qualidade de vida das famílias, será ele quem herdará parte considerável dos elogios. É preciso lembrar que, não há muito tempo, vimos um ministro da Fazenda sair da Esplanada dos Ministérios diretamente para o Palácio do Planalto.

Os aliados da frente ampla foram contidos.

Alckmin foi transformado no síndico do governo, carregador de piano, responsável pelo varejo das negociações políticas. Posição de relevância nos bastidores da política institucional, mas sem maiores impactos na opinião pública, que não acompanha em detalhes o dia a dia de Brasília. Simone Tebet ainda está esperando o Ministério da Cidadania, babando de vontade de colocar sua digital no Bolsa Família. Duvido que o PT entregará sua principal marca para uma potencial adversária.

O recado está mais que claro: o governo será do PT e os aliados da “frente ampla” que se contentem com posições periféricas. Não precisa ser vidente pra saber que em breve as insatisfações se transformarão em conflitos e parte daqueles que estiveram com Lula no palanque eleitoral migrarão para a oposição.

Onde há hegemonismo, há ressentimento. Não tem como ser diferente.

Outro desafio, talvez o mais importante, consistia em reconstruir a instituição Presidência da República, quase completamente destruída nos últimos anos. Apesar de ser agitador competente e carismático, Bolsonaro sempre foi fraco como presidente da República, incapaz de governar por dentro da institucionalidade. O resultado foi o enfraquecimento do cargo diante do crescente poder do Congresso Nacional, sobretudo de Arthur Lira.

Lula se viu, então, diante da difícil situação de precisar negociar com Lira, sem incomodar aquele que poderia vir a ser adversário muito perigoso. Porém, ao mesmo tempo, era necessário recuperar terreno institucional, principalmente no que se refere ao poder de executar o orçamento. Operação bastante complexa, e fadada ao fracasso, não fosse um aliado valiosíssimo: o Supremo Tribunal Federal, especialmente em Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski.

Gilmar garantiu dinheiro para o Bolsa Família, independentemente de qualquer negociação política. O ministro defendeu a tese de que comer é direito constitucional. Brilhante e original, não?

Daqui pra frente, nenhum presidente da Câmara dos Deputados conseguirá chantagear o governo com o tema “Bolsa Família”. A jurisprudência tá criada. Para alimentar os pobres tem que ter dinheiro. Simplesmente isso!

Na mesma cartada, Lewandowski deu o voto que formou o entendimento da corte a respeito da inconstitucionalidade do orçamento secreto. Difícil imaginar que a operação não tenha sido articulada com Lula, que percebeu como seria difícil negociar sozinho com Lira. Agora, sob a guarda do Supremo, a conversa se dá em outros termos, com Lira bem mais enfraquecido, mas longe de estar morto. A situação me parece ser exatamente essa: Lira enfraquecido, mas ainda de pé e convencido de que foi traído por Lula. Terá força para a vingança? A ver.

Fato é que a tal “judicialização da política” que começou a desestabilizar os governos petistas ainda em 2005, que derrubou Dilma e levou Lula à cadeia, agora joga a favor do PT. Basta saber até quando.

Na política, leitor e leitora, o mundo não gira, capota!!!

Mas o grande significado político da transição está mesmo na aprovação da PEC da Transição. O texto sepulta outra PEC, a 55, de dezembro 2016, promulgada nos primeiros meses do governo de Michel Temer.

A “PEC do Teto de Gastos” condicionava o Estado ao mercado, comprometendo o fundamento da ideia de “poder público”. Dilma caiu, exatamente, para que isso pudesse acontecer. Basta lembrar que o motivo formal do impeachment foram os tais crimes fiscais. O crime de Dilma, portanto, foi gastar mais que o permitido pelo “mercado”. Na prática, era o fim do conceito de “Estado nacional” tal como o século XIX inventou.

De lá pra cá, o Brasil voltou ao mapa da fome, os serviços públicos foram inviabilizados, a miséria cresceu assustadoramente. Prova cabal de que o conceito de Estado que derrubou Dilma, simplesmente, não cabe na realidade.

A tramitação da PEC da Transição, com a chancela do Congresso Nacional e do Supremo Tribunal Federal, é, antes de tudo, gesto de reparação histórica. É a derrota conceitual do golpe de 2016.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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