Em meio às comemorações do Ano Novo Lunar, com a chegada do Ano do Tigre de Água no último dia 1º de fevereiro, a cerimônia de abertura dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 acontece hoje em Pequim, com a capital tornando-se a primeira cidade a sediar o evento esportivo duas vezes. O fato histórico tem até termo próprio em chinês 双奥城市 ou “cidade Olímpica duas vezes”. Na primeira vez, em 2008, nas Olimpíadas de Verão, o gigante asiático abriu as portas para o olhar estrangeiro e, agora, o mundo está com os olhos voltados para a China.
Apesar de ocorrer tradicionalmente a cada quatro anos, desde 1924, os Jogos Olímpicos de Inverno deste ano chamam a atenção do Ocidente, que de longe observa o que se passa na China. Saltam aos olhos de quem está de fora as medidas de combate à rápida disseminação da variante ômicron do coronavírus, com Xi’an sendo a nova Wuhan e a estratégia de “Covid Zero”.
Afinal, é mais fácil se escandalizar com a estratégia de “Covid Zero”, que levou ao lockdown da cidade dos famosos guerreiros de terracota às vésperas do Natal, só para disfarçar o fracasso das democracias liberais no enfrentamento da pandemia, onde a política de “aprender a viver” com o vírus (e suas variantes) torna a imunidade coletiva uma impossibilidade, ainda que boa parte da população seja infectada.
É nesse contexto de eficácia na resposta chinesa contra a Covid-19 que se inserem os boicotes diplomáticos liderados pelos Estados Unidos. Mas por que os países estão boicotando diplomaticamente a Olimpíada na China?
Há anos, a China vem desafiando a hegemonia geopolítica dos Estados Unidos sobre os rumos das relações internacionais. A cada ano que passa, a economia chinesa se torna maior e mais capaz de produzir produtos de alta tecnologia, mostrando incrível capacidade de pesquisa e desenvolvimento.
A própria pandemia se tornou um marco do avanço atual do país. A política de tolerância zero à transmissão doméstica do coronavírus vem dando resultados em termos econômicos e sociais. Além de ter sido a única grande economia mundial a registrar crescimento no primeiro ano da pandemia, com expansão de 2,2% em 2020, a China também cumpriu a meta de eliminação da pobreza, tornando-se uma sociedade moderadamente próspera.
No ano seguinte, o país cresceu 8,1%, superando as metas do próprio governo chinês, do Banco Mundial e do Fundo Monetário Internacional (FMI) para 2021. Não bastassem os números expressivos que mostram a resiliência econômica, o país mais populoso do mundo representa 0,01% do total de mortes por covid-19 no mundo, totalizando menos de 5 mil óbitos no território chinês, em contraste aos mais de 5,7 milhões de vidas perdidas pela doença, segundo dados oficiais.
Mas quem se acostumou com a abordagem chinesa desde o trancamento em Wuhan, há dois anos, consegue ver que as quatro frentes de combate seguem como principais táticas. E isso não se restringe apenas às etapas de isolamento social, testagem em massa, rastreamento e tratamento, mas também à mobilização de profissionais de saúde e ao fluxo de produtos essenciais para evitar a falta de alimentos e de itens de necessidades diárias.
Tudo isso faz parte do plano de contingência adotado em Wuhan, ainda nos primeiros meses de 2020, que desde então serve de modelo na “guerra do povo” chinês para combater um “inimigo invisível”, conforme palavras do presidente Xi Jinping.
No ano passado, os surtos da variante delta na China mostraram ganhos de eficiência das ações de combate, notadamente em termos de tempo e espaço, permitindo a adoção de medidas mais localizadas, com restrições a alguns bairros de inúmeras províncias por algumas semanas. Em cerca de um mês, o país havia zerado os casos locais desse tipo mais infeccioso, até então.
A situação envolvendo a ômicron é tão difícil que fez a Eurásia reavaliar a política de “Covid Zero” na China. Em uma guinada de 180 graus, a famosa consultoria americana, fundada por Ian Bremmer, classificou a estratégia chinesa como o principal risco de 2022, afirmando que está fadada ao fracasso, apenas dois anos depois de qualificar tal prática como “incrivelmente bem-sucedida” no combate à covid-19.
Os avanços chineses, contudo, vêm ameaçando a hegemonia dos EUA. Nos últimos anos, o embate por parte de Washington vem se intensificando, com acusações de práticas comerciais ilegais, roubo de propriedade intelectual e violação dos direitos humanos. Durante o governo Trump (2016-2020), uma guerra comercial resultou na taxação de produtos chineses importados e restrições a empresas e trabalhadores do país, culminando na prisão de Meng Wanzhou, executiva da Huawei, gigante de telecomunicações que domina a tecnologia 5G, dando contornos de tech war à trade war.
Aliás, a China continuou fechando o cerco em torno das big techs na reta final de 2021, lançando uma série de novas regulações envolvendo cibersegurança, algoritmos e pagamentos móveis, com medidas que incluem o combate a fake news e o uso de dados pessoais por empresas. Enquanto isso, empresas como Google e Facebook continuam sendo acusadas de práticas de abuso do poder conferido pela inteligência artificial.
Eleito no fim de 2020, o atual líder da Casa Branca, Joe Biden, interrompeu a guerra comercial aberta, mas isso não significa que as hostilidades cessaram. Ao contrário, no início de 2022, as hostilidades continuaram. Desta vez, o ataque à China é feito através do boicote diplomático ao evento olímpico de inverno.
O boicote liderado pelos EUA recebe também o apoio do bloco anglofônico, como Canadá, Austrália e Reino Unido. Alinhados em interesses geopolíticos, estes países falantes da língua inglesa anunciaram que não enviaram delegação governamental aos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022. Os atletas dessas nações irão participar do evento esportivo, mas oficiais de governo não.
O argumento central para tal atitude baseia-se em uma antiga estratégia de alegação de violação dos direitos humanos pela China, denunciando a violação de direitos humanos em Xinjiang, onde supostamente seriam praticados crimes contra a minoria étnica muçulmana uigur. Dentre as acusações, estão a castração química e o trabalho forçado. Contudo, essa visão é questionada pelo governo chinês e por outros países ao redor do mundo.
Em 2019, uma carta assinada por 45 países em defesa da atuação do governo chinês em Xinjiang foi divulgada no âmbito do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU). Dentre os signatários estão Paquistão, Arábia Saudita, Síria, Irã, Iraque e outros países de maioria islâmica.
Em contrapartida, o histórico de invasões, mortes e crimes contra a população muçulmana no Oriente Médio, por exemplo, caracterizou as ações tomadas durante a “Guerra ao Terror”, liderada pelos EUA no período pós 11 de setembro de 2001 no Iraque, Afeganistão, Síria e Líbia.
Mas o Ocidente é alheio ao simbolismo dos anéis olímpicos, de unir os países em uma competição amistosa em nível internacional em que seus melhores representantes disputam com outros competidores do globo, e só enxerga duas possibilidades: vitória total ou derrota total.
Diante da situação, o interesse por trás da represália ao evento esportivo seria o de fortalecer o embate geopolítico com os chineses, promovendo desestabilização interna e externa do país, principalmente após o inegável sucesso no enfrentamento à pandemia. Fica claro, então, como o boicote diplomático aos Jogos Olímpicos de Inverno tem a real intenção de enfraquecer o evento e mudar uma visão generalizada do público com relação ao evento, com a hostilidade entre as nações ameaçando trazer alguns momentos desconfortáveis aos atletas.
Mas o próprio presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI), Thomas Bach, caracterizou o “circuito fechado” dos Jogos Olímpicos de Inverno de 2022 como um “porto seguro” para os atletas e “o lugar mais seguro do mundo”. A Organização Mundial da Saúde (OMS) também acredita que o evento em Pequim não apresentará riscos adicionais.
Portanto, a China está ciente da politização de longa data nas Olimpíadas, que vincula o esporte à política internacional e à competição econômica global, passando a ser um indicador de interesses nacionais, políticos e econômicos. Por ora, as lideranças chinesas reagem com tranquilidade aos recentes boicotes, seguindo a linha da política externa do “tigre” – e não do “lobo guerreiro” – neste novo ano mostrando uma postura corajosa, competitiva e forte.
Conforme palavras do presidente Xi, no discurso de ano-novo, reiteradas na cerimônia de abertura do COI: “O mundo está voltando seus olhos para a China, e a China está pronta”.
Este texto foi escrito por:
Douglas Meira Ferreira, sociólogo estudante de administração pública e integrante do Camélias do Leblon.
José Renato Peneluppi Jr., é doutor em administração pública chinesa, advogado e residente há 10 anos da China. Além disso, é integrante do Camélias do Leblon.
Camélias do Leblon
Coletivo formados por brasileiros residentes na China ou com algum vinculo com o pais em questão.
Foi criado em 2021 com a proposta de resgatar referências e contextos históricos, que sirvam de inspiração no debate sobre Brasil e China.
Trocando de informações e impressões, o objetivo é formar uma visão politica sobre a relação sino-brasileira, formando, formulando e problematizando a realidade a partir de uma visão do sul global.