Ofensiva conservadora de Temer põe em risco a Assistência Social

Ilustração: Simon Taylor

Por Carolina Goetten, de Curitiba, especial para os Jornalistas Livres

Desde que o presidente interino Michel Temer assumiu a Presidência da República, uma série de direitos sociais vêm sofrendo ameaças, ao mesmo tempo em que avançam projetos de caráter neoliberal. Dentre as várias medidas conservadoras, Temer já cortou verbas do programa Ciências sem Fronteiras; extinguiu as mulheres na liderança dos ministérios; e comprometeu os recursos destinados à assistência social, setor voltado a programas de proteção e promoção da justiça e redução da desigualdade. Ao incorporar o Ministério do Desenvolvimento Agrário na pasta Desenvolvimento Social, forçou o fracionamento de verbas entre a área social e a agricultura familiar no país.

Outra ameaça às conquistas democráticas asseguradas historicamente pelas lutas sociais é a proposta de foco exclusivo nos 5% mais pobres entre a população, grupo que o governo pretende delimitar como único beneficiário da assistência social. Ao restringir a abrangência dos programas sociais apenas a esta parcela dos brasileiros, enfatiza-se o papel meramente assistencial de tais políticas, sem compromisso com uma efetiva transformação da realidade.

Esse cenário reflete, para a conselheira do Conselho Estadual de Direitos Humanos Daniella Möller, uma perigosa visão moralizadora da questão social empenhada pelo governo interino. “As medidas expressam o entendimento de que os benefícios têm tempo de duração e devem ser pontuais, ignorando a situação em que a pessoa se encontra e todo o contexto de precariedade e desigualdade de condições em torno de quem precisa deles. Tais mudanças responsabilizam o indivíduo pela sua condição social, numa clara influência da meritocracia”, complementa Daniella, que também compõe a Comissão de Seguridade Social do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS).

Foto: Agência Brasil

Desmontes de direitos

Outro ponto polêmico entre as mudanças propostas por Temer é a intenção de contratar os chamados visitadores sociais. “Nessa proposta, os benefícios e os programas de renda seriam fiscalizados pelos visitadores”, explica Daniella. É como se a população empobrecida ou em situação de vulnerabilidade estivesse se aproveitando daquilo que, na verdade, é dever do Estado e direito do cidadão — “sobretudo num contexto de desigualdade social como é o do nosso país”, destaca.

Essa medida envolve alguns fatores críticos, tais como a contratação precarizada de 80 mil visitadores, o que expressa a tendência de desqualificar o trabalho especializado promovido pela assistência social. Paradoxalmente, avançam os retrocessos: desde o primeiro dia da gestão interina, o programa Bolsa Família foi congelado. “Não houve sequer uma nova entrada no projeto. Só recebem o benefício famílias que já estavam cadastradas no programa durante o governo da Dilma”, assinala Daniella. “Quem trabalha na área social sabe que o acesso sempre foi deficitário. Muitas famílias têm direito legal ao benefício e não conseguem acessá-lo. O programa deveria ser ampliado, e não reduzido”, pontua a conselheira.

Em conversas informais, ainda sem confirmação oficial, também foi sinalizado que não há interesse do governo em continuar com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Os recursos financeiros para o setor estão garantidos apenas até setembro, numa descontinuidade de recursos que vai contra a lógica legal do SUAS. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei 8742 de 07/12/1993, determina que compete à União “responder pela concessão e manutenção dos benefícios de prestação continuada”. Com a quebra de recursos, coloca-se em risco o funcionamento das milhares de unidades públicas de referência e especializadas que atendem a população com direitos violados em todo o país.

“A assistência social funciona de forma cofinanciada com o município, mas grande parte dos recursos vêm do orçamento federal”, alerta Daniella. “Sem este serviço, corremos o risco de ter mãos atadas para assegurar direitos humanos e prestar assistência à população mais pobre”, diz a conselheira.

Mobilizações em resistência

Para combater o avanço neoliberal nas políticas de assistência social, o CRESS e diversas entidades vêm se mobilizando e articulando um diálogo entre entidades e usuários do SUAS. Uma vez que o sistema compõe, junto à saúde e a previdência, o tripé da Seguridade Social, estes direitos também podem sofrer ameaças. “Quem precisa dos programas sociais é usuário da saúde pública e de benefícios previdenciários, e muitas vezes a única fonte de renda destas pessoas é garantida por meio do acesso a tais serviços, especialmente em momentos de crise”, destaca Daniella.

Recentemente, o Ministro da Saúde Ricardo Barros — nomeado por Temer — declarou que para conter a crise será necessário rever direitos sociais, como se estes fossem a causa do desequilíbrio econômico no país. Ao mesmo tempo, incentiva o investimento estatal em planos de saúde particulares; não pode ser coincidência o fato de que uma parte da campanha eleitoral de Barros foi financiada pelo Grupo Aliança, um dos principais operadores de plano de saúde do país.

“O governo vem dizendo que os direitos sociais, conquistados historicamente, oneram o Estado, e que não é possível assegurar esses direitos. Enquanto isso, direciona essa fatia do orçamento a outras finalidades. Isso é inaceitável”, denuncia Daniella. Por esse motivo, o diálogo construído entre a sociedade civil se reúne no Comitê pró-Frente Estadual em Defesa da Seguridade Social e Políticas Públicas. O objetivo é debater o destino desses setores, colocados diante de sucessivos retrocessos, e propor a defesa integrada dos direitos da população. O Comitê, suas diretrizes e reivindicações serão lançados durante o Circo da Democracia, que ocorre de 05 a 15 de agosto em Curitiba.

Assistência social no Brasil: uma retrospectiva

A Constituição Federal de 1988 passou a reconhecer a assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, que, junto às políticas de saúde e de previdência, compõem o sistema de seguridade social brasileiro. Porém, foram necessários cinco anos de lutas para homologá-la na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), em 1993.

Foi no governo Lula, iniciado em 2004, que surgiu o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), redesenhando essa política com o objetivo de atender a reivindicações populares e operacionalizar ações. “O SUAS foi conquista coletiva e histórica, que busca a humanização, a equidade, o controle social e a paridade com ações integradas e articuladas intersetorialmente, voltadas para o fortalecimento da família”, explica a assistente social Rogéria Machado Julio, que atua em um CRAS na regional de Santa Felicidade, em Curitiba.

Os CRAS são os Centros de Referência em Assistência Social, unidades em que ocorre o atendimento à população em situação de risco ou vulnerabilidade. Estes espaços encaminham o indivíduo a cursos de qualificação profissional para que possa se inserir no mercado de trabalho; oficinas que promovem a reflexão sobre temas de interesse da comunidade; atendimento e acompanhamento familiar, dentre outras ações. “Os CRAS possibilitaram a descentralização do atendimento e facilitaram o acesso da população com maior grau de vulnerabilidade social aos serviços socioassistenciais”, explica Rogéria. Segundo dados da última pesquisa do IBOPE, existem no Brasil 7.986 unidades do CRAS, distribuídas em 5.437 cidades.

Rogéria assinala, porém, que é preciso instituir os conselhos locais de assistência social para que não se configure como uma política imposta “de cima para baixo”, de forma injusta e arbitrária: “Falta identificar localmente, nos CRAS, as necessidades de cada área de abrangência, abrir espaço aos trabalhadores para se manifestarem e promover um encontro entre todos os envolvidos, para depois encaminhar essas demandas às instâncias municipal, regional, nacional. Sem controle social, o SUAS se torna uma política partidária, e não uma atribuição do Estado — e portanto instável”, propõe. Com ações estratégicas, o Sistema seria capaz de se aprofundar nas necessidades reais da população.

Também faltam cursos de qualificação para os profissionais da área. Os assistentes sociais trabalham com situações complexas e lidam com casos de intenso sofrimento. “O trabalhador também é um ser humano e, portanto, também adoece. Com o recente desmonte da saúde ocupacional na prefeitura de Curitiba, acabou-se o atendimento para os servidores públicos municipais e a investigação das constantes situações de arbitrariedade e assédio moral, que agora ficou a cargo da Procuradoria Geral do Município. Não temos mais a quem ou aonde recorrer”, denuncia Rogéria.

A tendência do primeiro-damismo

A primeira expressão da assistência social no Brasil deu-se em 1942 por meio da Legião Brasileira de Assistência (LBA), presidida por Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas. O estatuto do órgão atribuía sucessivamente sua presidência às primeiras-damas em exercício, e inaugurou uma tendência que até hoje está imbricada em nosso país: a vinculação histórica entre o papel “cuidador” da mulher, construído pela sociedade patriarcal, e a prática da caridade. Por isso, muitas vezes, em nossa história, as esposas de políticos assumem o cargo máximo nos órgãos voltados às causas sociais.

Em Curitiba, as duas últimas gestões de prefeitos confirmam a tendência, com Fernanda Richa e Márcia Fruet como últimas presidentes da Fundação de Ação Social (FAS). Para muitos especialistas, a opção por uma imagem pública carismática em vez de um profissional (seja homem ou mulher) apto a ocupar o cargo compromete a oferta qualificada de serviços e nos afasta de um sistema transformador das desigualdades, que vá além do assistencialismo ou filantropia. “Nessa relação, temos o passado e o presente convivendo de forma conflituosa e antagônica, denunciando que a assistência social, como política que pretende garantir direitos, encontra no primeiro-damismo uma limitação”, explica a mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, Sheyla Alves Barros.

É como se a única alternativa possível para a mulher libertar-se da vida familiar e ocupar o espaço público fosse por meio de uma atuação política que funcionasse como uma extensão de suas tarefas domésticas, atenuando os conflitos sociais — sobretudo os conflitos de classe. Mesmo assim, reconhece-se esses primeiros passos como importantes para o despertar crítico da mulher nas instâncias políticas.

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