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Golpe

Ofensiva conservadora de Temer põe em risco a Assistência Social

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Por Carolina Goetten, de Curitiba, especial para os Jornalistas Livres

Desde que o presidente interino Michel Temer assumiu a Presidência da República, uma série de direitos sociais vêm sofrendo ameaças, ao mesmo tempo em que avançam projetos de caráter neoliberal. Dentre as várias medidas conservadoras, Temer já cortou verbas do programa Ciências sem Fronteiras; extinguiu as mulheres na liderança dos ministérios; e comprometeu os recursos destinados à assistência social, setor voltado a programas de proteção e promoção da justiça e redução da desigualdade. Ao incorporar o Ministério do Desenvolvimento Agrário na pasta Desenvolvimento Social, forçou o fracionamento de verbas entre a área social e a agricultura familiar no país.

Outra ameaça às conquistas democráticas asseguradas historicamente pelas lutas sociais é a proposta de foco exclusivo nos 5% mais pobres entre a população, grupo que o governo pretende delimitar como único beneficiário da assistência social. Ao restringir a abrangência dos programas sociais apenas a esta parcela dos brasileiros, enfatiza-se o papel meramente assistencial de tais políticas, sem compromisso com uma efetiva transformação da realidade.

Esse cenário reflete, para a conselheira do Conselho Estadual de Direitos Humanos Daniella Möller, uma perigosa visão moralizadora da questão social empenhada pelo governo interino. “As medidas expressam o entendimento de que os benefícios têm tempo de duração e devem ser pontuais, ignorando a situação em que a pessoa se encontra e todo o contexto de precariedade e desigualdade de condições em torno de quem precisa deles. Tais mudanças responsabilizam o indivíduo pela sua condição social, numa clara influência da meritocracia”, complementa Daniella, que também compõe a Comissão de Seguridade Social do Conselho Regional de Serviço Social (CRESS).

Foto: Agência Brasil

Desmontes de direitos

Outro ponto polêmico entre as mudanças propostas por Temer é a intenção de contratar os chamados visitadores sociais. “Nessa proposta, os benefícios e os programas de renda seriam fiscalizados pelos visitadores”, explica Daniella. É como se a população empobrecida ou em situação de vulnerabilidade estivesse se aproveitando daquilo que, na verdade, é dever do Estado e direito do cidadão — “sobretudo num contexto de desigualdade social como é o do nosso país”, destaca.

Essa medida envolve alguns fatores críticos, tais como a contratação precarizada de 80 mil visitadores, o que expressa a tendência de desqualificar o trabalho especializado promovido pela assistência social. Paradoxalmente, avançam os retrocessos: desde o primeiro dia da gestão interina, o programa Bolsa Família foi congelado. “Não houve sequer uma nova entrada no projeto. Só recebem o benefício famílias que já estavam cadastradas no programa durante o governo da Dilma”, assinala Daniella. “Quem trabalha na área social sabe que o acesso sempre foi deficitário. Muitas famílias têm direito legal ao benefício e não conseguem acessá-lo. O programa deveria ser ampliado, e não reduzido”, pontua a conselheira.

Em conversas informais, ainda sem confirmação oficial, também foi sinalizado que não há interesse do governo em continuar com o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Os recursos financeiros para o setor estão garantidos apenas até setembro, numa descontinuidade de recursos que vai contra a lógica legal do SUAS. A Lei Orgânica da Assistência Social (LOAS), Lei 8742 de 07/12/1993, determina que compete à União “responder pela concessão e manutenção dos benefícios de prestação continuada”. Com a quebra de recursos, coloca-se em risco o funcionamento das milhares de unidades públicas de referência e especializadas que atendem a população com direitos violados em todo o país.

“A assistência social funciona de forma cofinanciada com o município, mas grande parte dos recursos vêm do orçamento federal”, alerta Daniella. “Sem este serviço, corremos o risco de ter mãos atadas para assegurar direitos humanos e prestar assistência à população mais pobre”, diz a conselheira.

Mobilizações em resistência

Para combater o avanço neoliberal nas políticas de assistência social, o CRESS e diversas entidades vêm se mobilizando e articulando um diálogo entre entidades e usuários do SUAS. Uma vez que o sistema compõe, junto à saúde e a previdência, o tripé da Seguridade Social, estes direitos também podem sofrer ameaças. “Quem precisa dos programas sociais é usuário da saúde pública e de benefícios previdenciários, e muitas vezes a única fonte de renda destas pessoas é garantida por meio do acesso a tais serviços, especialmente em momentos de crise”, destaca Daniella.

Recentemente, o Ministro da Saúde Ricardo Barros — nomeado por Temer — declarou que para conter a crise será necessário rever direitos sociais, como se estes fossem a causa do desequilíbrio econômico no país. Ao mesmo tempo, incentiva o investimento estatal em planos de saúde particulares; não pode ser coincidência o fato de que uma parte da campanha eleitoral de Barros foi financiada pelo Grupo Aliança, um dos principais operadores de plano de saúde do país.

“O governo vem dizendo que os direitos sociais, conquistados historicamente, oneram o Estado, e que não é possível assegurar esses direitos. Enquanto isso, direciona essa fatia do orçamento a outras finalidades. Isso é inaceitável”, denuncia Daniella. Por esse motivo, o diálogo construído entre a sociedade civil se reúne no Comitê pró-Frente Estadual em Defesa da Seguridade Social e Políticas Públicas. O objetivo é debater o destino desses setores, colocados diante de sucessivos retrocessos, e propor a defesa integrada dos direitos da população. O Comitê, suas diretrizes e reivindicações serão lançados durante o Circo da Democracia, que ocorre de 05 a 15 de agosto em Curitiba.

Assistência social no Brasil: uma retrospectiva

A Constituição Federal de 1988 passou a reconhecer a assistência social como direito do cidadão e dever do Estado, que, junto às políticas de saúde e de previdência, compõem o sistema de seguridade social brasileiro. Porém, foram necessários cinco anos de lutas para homologá-la na Lei Orgânica de Assistência Social (LOAS), em 1993.

Foi no governo Lula, iniciado em 2004, que surgiu o Sistema Único de Assistência Social (SUAS), redesenhando essa política com o objetivo de atender a reivindicações populares e operacionalizar ações. “O SUAS foi conquista coletiva e histórica, que busca a humanização, a equidade, o controle social e a paridade com ações integradas e articuladas intersetorialmente, voltadas para o fortalecimento da família”, explica a assistente social Rogéria Machado Julio, que atua em um CRAS na regional de Santa Felicidade, em Curitiba.

Os CRAS são os Centros de Referência em Assistência Social, unidades em que ocorre o atendimento à população em situação de risco ou vulnerabilidade. Estes espaços encaminham o indivíduo a cursos de qualificação profissional para que possa se inserir no mercado de trabalho; oficinas que promovem a reflexão sobre temas de interesse da comunidade; atendimento e acompanhamento familiar, dentre outras ações. “Os CRAS possibilitaram a descentralização do atendimento e facilitaram o acesso da população com maior grau de vulnerabilidade social aos serviços socioassistenciais”, explica Rogéria. Segundo dados da última pesquisa do IBOPE, existem no Brasil 7.986 unidades do CRAS, distribuídas em 5.437 cidades.

Rogéria assinala, porém, que é preciso instituir os conselhos locais de assistência social para que não se configure como uma política imposta “de cima para baixo”, de forma injusta e arbitrária: “Falta identificar localmente, nos CRAS, as necessidades de cada área de abrangência, abrir espaço aos trabalhadores para se manifestarem e promover um encontro entre todos os envolvidos, para depois encaminhar essas demandas às instâncias municipal, regional, nacional. Sem controle social, o SUAS se torna uma política partidária, e não uma atribuição do Estado — e portanto instável”, propõe. Com ações estratégicas, o Sistema seria capaz de se aprofundar nas necessidades reais da população.

Também faltam cursos de qualificação para os profissionais da área. Os assistentes sociais trabalham com situações complexas e lidam com casos de intenso sofrimento. “O trabalhador também é um ser humano e, portanto, também adoece. Com o recente desmonte da saúde ocupacional na prefeitura de Curitiba, acabou-se o atendimento para os servidores públicos municipais e a investigação das constantes situações de arbitrariedade e assédio moral, que agora ficou a cargo da Procuradoria Geral do Município. Não temos mais a quem ou aonde recorrer”, denuncia Rogéria.

A tendência do primeiro-damismo

A primeira expressão da assistência social no Brasil deu-se em 1942 por meio da Legião Brasileira de Assistência (LBA), presidida por Darcy Vargas, esposa de Getúlio Vargas. O estatuto do órgão atribuía sucessivamente sua presidência às primeiras-damas em exercício, e inaugurou uma tendência que até hoje está imbricada em nosso país: a vinculação histórica entre o papel “cuidador” da mulher, construído pela sociedade patriarcal, e a prática da caridade. Por isso, muitas vezes, em nossa história, as esposas de políticos assumem o cargo máximo nos órgãos voltados às causas sociais.

Em Curitiba, as duas últimas gestões de prefeitos confirmam a tendência, com Fernanda Richa e Márcia Fruet como últimas presidentes da Fundação de Ação Social (FAS). Para muitos especialistas, a opção por uma imagem pública carismática em vez de um profissional (seja homem ou mulher) apto a ocupar o cargo compromete a oferta qualificada de serviços e nos afasta de um sistema transformador das desigualdades, que vá além do assistencialismo ou filantropia. “Nessa relação, temos o passado e o presente convivendo de forma conflituosa e antagônica, denunciando que a assistência social, como política que pretende garantir direitos, encontra no primeiro-damismo uma limitação”, explica a mestre em Serviço Social pela Universidade Federal de Pernambuco, Sheyla Alves Barros.

É como se a única alternativa possível para a mulher libertar-se da vida familiar e ocupar o espaço público fosse por meio de uma atuação política que funcionasse como uma extensão de suas tarefas domésticas, atenuando os conflitos sociais — sobretudo os conflitos de classe. Mesmo assim, reconhece-se esses primeiros passos como importantes para o despertar crítico da mulher nas instâncias políticas.

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Campinas

Ocupação Mandela: após 10 dias de espera juiz despacha finalmente

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Depois de muita espera, dez dias após o encerramento do prazo para a saída das famílias da área que ocupam,  o juiz despacha no processo  de reintegração de posse contra da Comunidade Mandela, no interior de São Paulo.
No despacho proferido , o juiz do processo –  Cássio Modenesi Barbosa –  diz que  aguardará a manifestação do proprietário da área sobre eventual cumprimento de reintegração de posse. De acordo com o juiz, sua decisão será tomada após a manifestação do proprietário.
A Comunidade, que ocupa essa área na cidade de Campinas desde 2017,   lançou uma nota oficial na qual ressalta a profunda preocupação  em relação ao despacho  do juiz  em plena pandemia e faz apontamento importante: não houve qualquer deliberação sobre as petições do Ministério Público, da Defensoria Pública, dos Advogados das famílias e mesmo sobre o ofício da Prefeitura, em que todas solicitaram adiamento de qualquer reintegração de posse por conta da pandemia da Covid-19 e das especificidades do caso concreto.

Ainda na nota a Comunidade Mandela reforça:

“ Gostaríamos de reforçar que as famílias da Ocupação Nelson Mandela manifestaram intenção de compra da área e receberam parecer favorável do Ministério Público nos autos. Também está pendente a discussão sobre a possibilidade de regularização fundiária de interesse social na área atualmente ocupada, alternativa que se mostra menos onerosa já que a prefeitura não cumpriu o compromisso de implementar um loteamento urbanizado, conforme acordo firmado no processo. Seguimos buscando junto ao Poder público soluções que contemplem todos os moradores da Ocupação, nos colocando à disposição para que a negociação de compra da área pelas famílias seja realizada.”

Hoje também foi realizada uma atividade on-line  de Lançamento da Campanha Despejo Zero  em Campinas -SP (

https://tv.socializandosaberes.net.br/vod/?c=DespejoZeroCampinas) tendo  a Ocupação Mandela como  o centro da  discussão na cidade. A Campanha Despejo Zero  em Campinas  faz parte da mobilização nacional  em defesa da vida no campo e na cidade

Campinas  prorroga  a quarentena

Campinas acaba prorrogar a quarentena até 06 de outubro, a medida publicada na edição desta quinta-feira (10) do Diário Oficial. Prefeitura também oficializou veto para retomada de atividades em escolas da cidade.

 A  Comunidade Mandela e as ocupações

A Comunidade  Mandela luta desde 2016 por moradia e  desde então  tem buscado formas de diálogo e de inclusão em políticas  públicas habitacionais. Em 2017,  cerca de mais de 500 famílias que formavam a comunidade sofreram uma violenta reintegração de posse. Muitas famílias perderam tudo, não houve qualquer acolhimento do poder público. Famílias dormiram na rua, outras foram acolhidas por moradores e igrejas da região próxima à área que ocupavam.  Desde abril de 2017, as 108 famílias ocupam essa área na região do Jardim Ouro Verde.  O terreno não tem função social, também possui muitas irregularidades de documentação e de tributos com a municipalidade.  As famílias têm buscado acordos e soluções junto ao proprietário e a Prefeitura.
Leia mais sobre:  
https://jornalistaslivres.org/em-meio-a-pandemia-a-comunidade-mandela-amanhece-com-ameaca-de-despejo/

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#EleNão

EDITORIAL – HOJE É DIA DE LUTO! PERDEMOS O MENINO GABRIEL

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Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Gabriel e Lula: aniversário no mesmo dia: 27/10

Perdemos um camarada valoroso, um menino negro encantador de feras, um sorriso no meio das bombas e da violência policial, um guerreiro gentil que defendeu com unhas e dentes a Democracia, a presidenta Dilma Rousseff durante todo o processo de impeachment, e o povo brasileiro negro e pobre e periférico, como ele.

Gabriel Rodrigues dos Santos era onipresente. Esteve em Brasília, na frente do Congresso durante o golpe, em São Paulo, nas manifestações dos estudantes secundaristas; em Curitiba, acampando em defesa da libertação do Lula. Na greve geral, nas passeatas, nos atos, nos encontros…

O Gabriel aparecia sempre. Forte, altivo, sorrindo. Como um anjo. Anjo Gabriel, o mensageiro de Deus

Estamos tristes porque ele se foi hoje, no Incor de São Paulo, depois de um sofrimento intenso e longo. Durante três meses Gabriel enfrentou uma infecção pulmonar que acabou levando-o à morte.

Estamos tristíssimos, mas precisamos manter em nossos corações a lembrança desse menino que esteve conosco durante pouco tempo, mas o suficiente para nos enriquecer com todos os seus dons.

Enquanto os Jornalistas Livres estiverem vivos, e cada um dos que o conheceram viver, o Gabriel não morrerá.

Porque os exemplos que ele deixou estarão em nossos atos e pensamentos.

Obrigada, querido companheiro!

Tentaremos, neste infeliz momento de Necropolítica, estar à altura do Amor à Vida que você nos deixou.

 

 

Leia mais sobre quem foi o Gabriel nesta linda reportagem do Anderson Bahia, dos Jornalistas Livres

 

Grande personagem da nossa história: Gabriel, um brasileiro

 

 

 

 

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Golpe

Presidência cavalga para fora dos marcos do Estado de Direito

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Por Ruy Samuel Espíndola*

O Governo, num Estado de Direito, deve ser eleito, e, depois de empossado, deve ser exercido de acordo com regras pré-estabelecidas na Constituição. Essas são as regras do jogo, tanto para a tomada do poder, quanto para o seu exercício, como ensina Norberto Bobbio. Governo entendido aqui como o conjunto das instituições eletivas, representadas por seus agentes políticos eleitos pelo voto popular. Governo que, numa República Federativa e Presidencialista como a brasileira, é exercido no plano da União Federal, pela chefia do Executivo, pela Presidência da República e seus ministros, como protagonistas e pelo Congresso Nacional, com os deputados federais e senadores, como coadjuvantes.

Ao Governo, exercente máximo da política, devem ser feitas algumas perguntas, para saber de sua legitimidade segundo o direito vigente: quem pode exercê-lo e com quais procedimentos? Ao se responder a tais questões, desvela-se o mote que intitula este breve ensaio.

Assim, pode-se dizer “Governo constitucional” aquele eleito segundo as regras estabelecidas na Constituição: partido regularmente registrado, que, em convenção, escolheu candidato, que, por sua vez, submetido ao crivo do sufrágio popular, logrou êxito eleitoral. Sufrágio que culminou após livre processo eleitoral, no qual se assegurou, em igualdade de condições, propaganda eleitoral e manejo de recursos para a promoção da candidatura e de suas bandeiras, e que não sofreu, ao longo da disputa, nenhum impedimento ou sanção do órgão executor e fiscalizador do processo eleitoral: a justiça eleitoral. Justiça que, através do diploma, habilita, legalmente, o candidato escolhido nas urnas, a se investir de mandato e exercê-lo. Um governo constitucional, assim compreendido, merece tal adjetivação jurídico-politica, ainda que durante o período de campanha ou antes ou depois dele, o candidato e futuro governante questione o processo de escolha, coloque em dúvida sua idoneidade, ou mesmo diga que não estará disposto a aceitar outro resultado eleitoral que não o de sua vitória, ou, após conhecer o resultado da eleição, diga que o conjunto de seus adversários podem mudar para outros países, pois não terão vez em nossa Pátria e irão para a “ponta da praia” .

O Governo constitucional, sob o prisma de seu exercício, após empossado, é aquele que respeita a mínimas formas constitucionais, enceta suas políticas mediante os instrumentos estabelecidos na Constituição: sanciona e publica leis que antes foram deliberadas congressualmente; dá posse a altas autoridades que foram sabatinadas pelas casas do congresso; não usa de sua força, de suas armas, a não ser de modo legítimo, respeitando a oposição, as minorias e os direitos fundamentais das pessoas e de entes coletivos; administra os bens públicos e arrecada recursos públicos de acordo com a lei pré-estabelecida, sem confisco e de modo impessoal; acata as prerrogativas do Judiciário e do Legislativo, ainda que discorde ou se desconforte com suas decisões; prestigia as competências federativas, tanto legislativas, quanto administrativas, etc, etc. Promove a unidade nacional, em atitudes, declarações públicas e políticas concretamente voltadas a tal fim.

O “Governo constitucionalista”, por sua vez, além de ascender ao poder e exercê-lo, tendo em conta regras constitucionais, como faz um governo constitucional, defende o projeto constitucional de Estado e Sociedade, através do respeito amplo, dialógico e progressivo do projeto constituinte assentado na Constituição. Respeita a história política que culminou no processo reconstituinte e procura realizá-lo de acordo com as forças políticas e morais de seu tempo, unindo-as, ainda que no dissenso, através da busca de consensos mínimos no que toca ao projeto democrático e civilizatório em constante construção sempre inacabada. E governo constitucionalista, no Brasil, hoje, para merecer esse elevado grau de significação político-democrática e civilizatória, precisa respeitar a gama de tarefas e missões constitucionais descritas em inúmeras normas constitucionais que tutelam, entre outros grupos sociais, os índios, os negros, os LGBT, os ateus, os de inclinação política ideológica à esquerda, ou a à direita, ou ao centro, sem criminalização ou marginalização no discurso público de quaisquer tendências ideológicas. É preciso o respeito ao pluralismo político e aos princípios de uma democracia com níveis de democraticidade que não se restringem ao campo majoritário das escolhas políticas, mas, antes, se espraiam para as suas dimensões culturais, sociais, econômicas, sanitárias, antropológicas e sexuais etc, etc.

Governos que ascenderam sem respeito a normas constitucionais, como foi o de Getúlio Vargas em 1930 e o que depôs João Goulart em 1964, são inconstitucionais. E governo que se exerce fechando o congresso e demitindo ministros do STF, como se fez em 1969, com a aposentação compulsória dos ministros da Corte Suprema Evandro Lins e Silva, Hermes Lima e Victor Nunes Leal, são governos inconstitucionais, arbitrários, autocráticos, fora do projeto civilizatório e democrático de 1988.

O ponto crítico de nosso ensaio é que um governo pode ascender de modo constitucional, mas passar a ser exercido de modo inconstitucional e/ou de modo inconstitucionalista. O governo do presidente da República, Jair Messias Bolsonaro, é um exemplo deste último e exótico tipo: consegue ser inconstitucional e inconstitucionalista no seu exercício, embora investido de maneira constitucional.

E o conjunto de declarações da reunião ministerial de 22/4, dadas a conhecer em 22/5, é um exemplo recente a elucidar nossa asserção: na fala presidencial, a violação ao princípio da impessoalidade (art. 37, caput, CF) ressoa quando afirma que deseja agir para que familiares seus e amigos não sejam prejudicados pela ação investigativa de órgãos de segurança (polícia federal). Na fala do ministro da Educação, quando afirma “que odeia” a expressão “povos indígenas” e os “privilégios” garantidos a esses no texto constitucional, o que indica contrariar o constitucionalismo positivado nos signos linguístico-normativos “população”, “terras”, “direitos”, “língua”, “grupos” e “comunidades indígenas”, constantes nos artigos 22, XIV, 49, XVI, 109, XI, 129, V, 176, § 1º, 215, § 1º, 231, 232 da CF e 67 do ADCT. Essa fala ministerial, aliás, ressoa discurso de campanha de 2018, quando o então candidato disse, no clube israelita de São Paulo: “No meu governo, não demarcarei nenhum milímetro de terras para indígenas. Também há inconstitucionalismo evidente na fala do Ministro do Meio Ambiente quando defendeu que se fizessem “reformas infralegais” “de baciada”, “para passar a boiada”, “de porteira aberta”, no momento em que o País passa pela pandemia de covid-19, pois o foco de vigília crítica da imprensa não seria o tema ambiental, mas o sanitário e pandêmico, o que facilitaria os intentos inconstitucionalistas contra a matéria positivada nos arts. 23, VI, 24, VI e VII, 170, VI, 174, § 3º, 186, II, 200, VII, 225 e §§ da CF.

Outras falas e atitudes presidenciais ainda mais recentes, e de membros do governo, contrastam com as normas definidoras da separação de poderes, da federação e da democracia, princípios fundamentais estruturantes de nossa comunidade política naciona. A nota do general Augusto Heleno, chefe do GSI, ao dizer que eventual requisição judicial do celular presidencial pelo STF, levaria à instabilidade institucional, traz desarmonia e agride ao artigo 2º, caput, da Constituição Federal. “Chega, não teremos mais um dia como hoje” e “Decisões judiciais absurdas não se cumprem”. Essas falas presidenciais, após o cumprimento de mandados judiciais no âmbito do inquérito judicial do STF, ordenados pelo Ministro Alexandre Moraes, agridem o mesmo dispositivo constitucional, com o agravante do artigo 85, II e VIII, da CF, que positiva ser crime de responsabilidade do presidente atentar contra o livre exercício do Poder Judiciário. E o atentado contra a democracia poderia ser também destacado na fala do filho do Presidente, deputado federal Eduardo Bolsonaro, que declarou estarmos próximos de uma ruptura e que seu pai seria chamado, com razão, de ditador, a depender das atividades investigativas do judiciário, tomadas como agressões ao governo de seu genitor. E o atentado contra a federação se evidencia nas falas presidenciais contra os governadores e prefeitos que estão a tomar medidas sanitárias no combate a covid-19, em que o presidente objetiva desacreditá-los e incitar suas populações contra esses chefes dos executivos estaduais e municipais, para que rompam o isolamento social, com agressão patente aos artigos 1º e 85, II, da Constituição. Os ataques diários aos órgãos de imprensa e a jornalistas, assim como sua atitude contra indagações de repórteres, também afrontam o texto da constituição da República: 5º, IX e XIV, 220 §§ 1º e 2º, protegidos pelo art. 85, III, da CF.

Em nossa análise temporalmente situada e teoricamente atenta, o conjunto de declarações públicas conhecidas do então deputado federal Jair Bolsonaro, desde seu primeiro mandato parlamentar, alcançado em 1990, portanto após o marco constitucional de 1988, embora constituam falas inconstitucionais e inconstitucionalistas, não servem para descaracterizar a “constitucionalidade” de sua eleição em 2018. Embora ainda reste, junto ao TSE, o julgamento de ação de investigação judicial eleitoral por abuso dos meios de comunicação social, que poderão ganhar novos elementos de instrução resultantes da CPI no Congresso sobre fake news e do inquérito judicial do STF com objeto semelhante. Sua eleição presidencial se mantém válida, assim como sua posse, enquanto essa ação eleitoral não for julgada definitivamente  pela Suprema Corte eleitoral brasileira.

Algumas de suas falas públicas inconstitucionalistas e inconstitucionais pré-presidenciais devem ser lembradas: “Erro da ditadura foi torturar e não matar”; “O Brasil só vai mudar quando tivermos uma guerra civil, quando matarmos uns trinta mil, não importa se morrerem alguns inocentes”; “Os tanques e o exército devem voltar às ruas e fechar o congresso nacional”, etc. E durante o processo eleitoral de 2018, falas inconstitucionalistas também foram proferidas: “No meu governo, não demarcarei um milímetro de terras para indígenas”. “O Brasil não tem qualquer dívida com os descendentes de escravos. Nossa geração não tem culpa disso, mesmo porque os próprios negros, na África, escravizavam a si mesmos”, entre outras.

A resposta a nossa indagação: embora tenhamos um governo eleito de modo constitucional – até decisão final do TSE -, ele está sendo exercido de modo inconstitucional e de modo inconstitucionalista. A Presidência da República atual, caminha, inconstitucionalmente para fora do marco do Estado de Direito. E o passado pré-presidencial do presidente da República demonstra que o seu inconstitucionalismo governamental não é episódico e sim coerente com toda a sua linha de pensamento e ação desde seu primeiro mandato parlamentar federal.

  • Advogado – mestre em Direito UFSC Professor de Direito Constitucional – Presidente da Comissão de Direito Constitucional da OAB-SC – Membro Consultor da Comissão de Estudos Constitucionais do Conselho Federal da OAB – Imortal da Academia Catarinense de Letras Jurídicas, cadeira 14, Patrono Advogado Criminalista Acácio Bernardes. 

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