Ódio aos ciclistas e misoginia nas ruas de São Paulo. Até quando???

 

À medida que o número de ciclovias e a adesão ao uso da bicicleta como meio de transporte crescem por uma série de razões, como qualidade de vida e mobilidade urbana sustentável, a intolerância no trânsito da capital paulista para com os ciclistas não dá trégua. Na última segunda-feira, 24, Giovanna Franceschi Dias, jornalista e moradora de Moema, estava indo de bicicleta para o trabalho –é assim há quase dois meses — , quando foi surpreendida pela intolerância do motorista de uma Hilux branca.

Giovanna estava sob a faixa de pedestres, no cruzamento das avenidas Moema e Helio Pellegrino para entrar sentido avenida Faria Lima, aguardando o farol abrir, à frente do carro. “Assim que abriu o sinal, ele avançou, me fechou e eu, acuada, assustada, cambaleei para o lado direito, coloquei o pé no chão e por pouco não caí.”

Não satisfeito com seu nível de violência, o motorista freou e gritou de dentro do carro:

“Vai lamber as bolas do prefeito, vagabunda! Aqui não é Amsterdam!”

De fato, não estamos em Amsterdam, mas as regras de convivência urbana por aqui são claras e os artigos do Código de Trânsito Brasileiro que tratam da segurança dos motoristas, ciclistas e pedestres também. O Artigo 29: em seu inciso XII, § 2º diz que: “…em ordem decrescente, os veículos de maior porte serão sempre responsáveis pela segurança dos menores, os motorizados pelos não motorizados e, juntos, pela incolumidade do pedestre.”

Além desse fato, não respeitado pelo motorista da Hilux branca e tantos outros que adotam este comportamento sociopata no trânsito, o caso da ciclista ainda caberia na Lei Maria da Penha, em seu Art. 2o: “Toda mulher, independentemente de classe, raça, etnia, orientação sexual, renda, cultura, nível educacional, idade e religião, goza dos direitos fundamentais inerentes à pessoa humana, sendo-lhe asseguradas as oportunidades e facilidades para viver sem violência, preservar sua saúde física e mental e seu aperfeiçoamento moral, intelectual e social.”

Recomposta minimamente a ponto de continuar seu trajeto e chegar ao seu destino, a jornalista não conseguiu anotar a placa do carro, mas deu uma resposta na timeline de seu perfil do Facebook ao motorista, em formato ‘carta aberta’, amplamente apoiada, curtida e compartilhada nesta semana, dando uma verdadeira lição de cidadania numa cidade que anda cultivando o ódio diante de políticas públicas de inclusão, diversidade e mobilidade.

“Carta aberta para o senhor motorista de uma hilux branca que passava pelos entornos da Faria Lima na manhã desta segunda-feira.

Este senhor achou prudente me dar uma lição quase me atropelando de propósito só para me assustar, já que eu estava bloqueando a via dos carros com a minha — ENORME- bicicleta parada ao lado direito da via enquanto o sinal estava fechado. Esta carta vai para ele que, ao me ver quase caindo no asfalto, abriu a janela e gritou “vai lamber as bolas do prefeito, vagabunda! Aqui não é Amsterdam”.

Caro, muito obrigada por me lembrar que aqui não é Amsterdam. Infelizmente eu tive essa percepção um pouco antes de você gritar esta informação porque o grau de educação das pessoas de lá não permitiria que agissem da forma como o senhor agiu. Aliás, se o senhor pesquisar um pouco, bem pouco, saberá que hoje em dia, a população de Amsterdam aderiu o uso da bicicleta como meio de transporte para diminuir o número de acidentes de carro que, só em 1971, somou mais de 3.300 mortes sendo 400 delas de crianças. Como o senhor pode notar, a preocupação com a vida das pessoas lá em Amsterdam já era bem mais consciente do que a nossa, aqui no Brasil, em 2015.

Em relação ao termo “vagabunda” utilizado pelo senhor para se dirigir a mim, afirmo que foi empregado da maneira errada. O senhor pode consultar em qualquer dicionário o significado desta palavra que, para homens significa “quem vive no ócio” e para mulheres “quem tem muitos homens”. Veja bem, como eu utilizo a bicicleta para chegar ao meu trabalho de forma mais rápida e saudável, logo eu não vivo no ócio. E não vejo relação nenhuma entre andar de bicicleta e ter muitos homens (o que, realmente, não diz respeito ao senhor).

Visto estes dois pontos, gostaria de fazer mais uma observação sobre “lamber as bolas do prefeito”. Em primeiro lugar, o fato de eu optar por ter uma qualidade de vida mais saudável não tem absolutamente nada a ver com a minha posição política. Em segundo lugar, se em uma pesquisa eu constatei que da minha casa para o meu trabalho eu levo uma hora de carro, 40 minutos de ônibus, 30 minutos caminhando e 15 de bicicleta, não vejo razão nenhuma para escolher o mais demorado e que prejudica ainda mais o trânsito de outras pessoas que não têm a mesma facilidade de trabalhar perto de casa e utilizam o carro (o que pode ser o caso do senhor).

E por fim, quero dizer que é por culpa de indivíduos como o senhor que, muitas outras pessoas têm medo de optar pela bicicleta como meio de transporte. Essa conscientização não tem a ver com política, mas com qualidade de vida. Pessoas estão escolhendo ir de bicicleta porque já notaram benefícios físicos e emocionais que este exercício promove. A sua atitude diminui a minha esperança de ver o Brasil como um país melhor para as pessoas, um lugar com menos “umbiguismo” e mais colaboração coletiva, um país mais consciente sobre qualidade de vida e do impacto disso para nosso bem estar, um lugar que, poderia ser MUITO MELHOR que Amsterdam, mas que ainda tá lá atrás por culpa de pessoas com a mentalidade igual ao do senhor.

Espero que o senhor tenha chegado bem ao seu destino. Passar bem!

Giovanna Franceschi Dias”

Em entrevista exclusiva para os Jornalistas Livres, Giovanna conta sobre sua rotina diária, o ir e vir para o trabalho de bike; por que aderiu a este meio de transporte na cidade de São Paulo e o que pensa sobre a violência que sofreu.

Jornalistas Livres — Quantos km separam a sua casa do trabalho?

Giovanna Franceschi Dias — São mais ou menos quatro quilômetros..

Jornalistas Livres — Desde quando você aderiu ao uso da bike como meio de transporte para o trabalho?

Giovanna Franceschi Dias — Eu estou indo trabalhar de bike diariamente já faz um mês e meio. É bem melhor, já estou acostumada com ela e tenho mais confiança. Na verdade, eu brinco que minha bike tem vida, se chama Red Mercury e já se enquadra como minha amiga. Quando tive oportunidade de fazer intercâmbio em Dublin, na Irlanda, utilizei a bicicleta como meio de transporte por dois anos, então já estava acostumada com as regras. Mas, infelizmente, aqui no Brasil essa cultura parece demorar mais do que qualquer outro lugar do mundo para ser aceita, e mais ainda, para ser adotada.

Jornalistas Livres — Quais as vantagens comparadas a ônibus e carro?

Giovanna Franceschi Dias — Muitas. De ônibus eu levava uma média de 40 minutos para chegar ao trabalho. De bike eu levo 15 minutos. Se eu pego todos os faróis fechados esse tempo pode ir para 20 minutos, mas não passa disso. Eu gasto menos, é o meu exercício do dia, chego ao trabalho e volto pra casa mais disposta, sem contar a sensação de pedalar que é muito gostosa. Umas duas semanas atrás choveu e eu fui de ônibus. Estava lotado de gente. Até cruzar a Santo Amaro geralmente é parado e levei 40 minutos para chegar ao trabalho. Pra mim, isso não é inteligente. De bike eu libero meu espaço no busão e libero também espaço para outros carros. Chego mais rápido e me sinto melhor.

Jornalistas Livres — Quantas pessoas no seu trabalho, que você saiba, vão trabalhar de bike?

Giovanna Franceschi Dias — Eu trabalho em um escritório pequeno, somos em poucos e sou a única que vai de bike, mas a maioria dos meus colegas de trabalho moram bem mais longe do que eu (em Guarulhos, por exemplo) e super-apoiam a minha iniciativa. Quando eu vou estacionar a bike no prédio vejo mais três bicicletas todos os dias. Tenho notado mais gente utilizando bikes. Gente de todos os tipos e classes. Acho importante falar sobre isso. As pessoas direcionaram o discurso contra a “elite paulista”, o “coxinha” porque o senhor tinha uma Hilux. Sim, ele tinha uma Hilux, mas poderia ser um carro popular. Eu já fui fechada por carros populares. Esse tipo de atitude não é classificado por classe social, nem ideologia, nem religião. Isso é uma questão de respeito e educação, apenas. Não deveria ser polarizado. O senhor que fez essa agressão comigo não é um ignorante, ele sabia o que estava fazendo e dizendo, então além de intolerante, ele foi misógino e sectário. Onde eu trabalho vejo pessoas de todos os tipos e classes utilizando a bicicleta e transporte público. Desde os mais jovens — que são a maioria — até senhores executivos que vão de terno e capacete. Na mesma segunda que aconteceu essa situação eu vi um pai com o filho na bike, ou seja, a bicicleta é um meio de transporte apartidário, é para todos e muitos já estão vendo os benefícios. Na maioria das vezes, sempre tem mais um ciclista comigo na rua e geralmente estamos ali, um atrás do outro. Quando paramos no farol nos olhamos aprovando a atitude um do outro. O respeito entre ciclistas é muito legal.

Jornalistas Livres — Já havia acontecido situação parecida?

Giovanna Franceschi Dias — Levar fechadas de automóveis não é algo raro, aliás é bem recorrente. Então, sim, já tinha sido fechada, principalmente por taxista, mas nunca havia recebido uma agressão verbal deste tipo, nunca tinha sido hostilizada por estar utilizando uma bike e esse foi o principal motivo da minha revolta e motivação a escrever a carta. Eu acho importante dizer também que isso não é generalizado. Muitos carros respeitam as bicicletas, grande parte deles tem cuidado na hora de ultrapassar uma bike e fazem isso mais devagar, muitas vezes dão preferência e são gentis. Aliás, é muito importante salientar isso, eu acho que está rolando uma conscientização e adaptação bem maior sobre o uso da bicicleta e tenho esperanças que isso vai melhorar cada vez mais.

Jornalistas Livres — Normalmente, no seu trajeto, os motoristas são mais cordiais ou mais agressivos?

Giovanna Franceschi Dias — Geralmente as pessoas são cordiais. Como eu disse antes, as fechadas acontecem, mas eu nunca sofri uma agressão como a desse dia. Eu lembro que uns três anos atrás quando ganhei a minha bicicleta de uma prima que não usava, tentei fazer o percurso casa/trabalho e os carros foram bem mais agressivos e, foi por isso que decidi não ir de bike naquela época. Hoje em dia eu sinto uma melhora sensível nisso, acho que estamos no caminho e todos precisam se educar. Os motoristas, os ciclistas e os pedestres. Na rua tem espaço para todos nós e nós temos que tornar esse espaço mais harmonioso. O dever é de todos e para todos.

Jornalistas Livres — Como reagem no trânsito?

Giovanna Franceschi Dias — Buzinas?! Risos… Outro dia eu até brinquei que algumas pessoas devem achar que a buzina é um instrumento mágico que, ao ser utilizado, faz sumirem todas as pessoas em volta. Só que não é assim, né?! É muito mais fácil desviar e fugir do trânsito com a bicicleta e, é claro que não é bacana ver aquele monte de gente parada. Eu entendo o estresse que as pessoas vivem e este é um dos motivos que me fez optar pela bike.

Jornalistas Livres — Você ficou com medo do que aconteceu? O que pensou durante o trajeto após o ocorrido? Qual a mensagem que você deixa para outros ciclistas?

Giovanna Franceschi Dias — De verdade? Não! Eu não fiquei com medo. Na hora eu fiquei bastante assustada pra não dizer um pouco passada com a atitude dele, mas continuei o trajeto só um pouco mais devagar. Eu sei que devem existir outras pessoas como este senhor, mas eu não acho que seja uma maioria. E, se topar com um deles por aí, com certeza, a melhor reação é não se alterar e tentar continuar seu trajeto da maneira mais tranquila, mesmo com o “sangue fervendo”. Nós temos que procurar uma solução para esse tipo de situação, mas pacífica. Foi isso que eu fiquei pensando no caminho para o trabalho. Que tipo de ação deve ser realizada para gerar essa consciência coletiva nas ruas de São Paulo? O que podemos fazer? Como educar essas pessoas? Eu acho sim muito bacana a inclusão das ciclovias em São Paulo, mas junto com isso tem que vir um pacote, como campanhas educativas para informar, sensibilizar e conscientizar as pessoas sobre esse hábito que, felizmente, está crescendo aqui na nossa cidade. Acho que devem ser divulgados exemplos de outras capitais que já passaram por isso, inclusive Amsterdam. Acho que devem ser realizadas ações que integrem motoristas, ciclistas e pedestres, difundir muito mais as regras de trânsito para ciclistas. Não é só pegar a bicicleta e sair pedalando. Para estar nas ruas tem que ter conhecimento e respeitar as regras do trânsito e, principalmente, criar um canal de denúncia realmente efetivo para situações como a que eu passei.

Jornalistas Livres — Isso te tirou a vontade ou a coragem pra desistir de andar de bike em SP?

Giovanna Franceschi Dias — De maneira alguma, pelo contrário, me estimulou ainda mais a não só continuar usando a bike, como adotar a causa em ativismo. Essa repercussão me mostrou que existem pessoas que querem aderir, mas ainda têm medo. Então quero motivar essas pessoas a fazer da rua um lugar mais seguro para elas terem coragem de tentar. Às vezes eu vejo que só o fato de usar a bicicleta já inspira outras pessoas a, pelo menos, considerarem fazer o mesmo. Já passou da hora das pessoas aderirem a essa cultura de mobilidade todo juntos, unidos. Acredito que só vamos ver harmonia nas ruas de São Paulo quando houver essa união entre motoristas, ciclistas e pedestres. Motoristas não são monstros e os donos da rua, assim como ciclistas não são irresponsáveis que saem pedalando por aí arriscando a vida. Logo, os dois juntos têm a obrigação de zelar pela vida do pedestre. Então não é a hora de sair classificando e segregando pessoas, é hora de nos juntar para melhorar a mobilidade urbana. Isso é urgente e essencial aqui em São Paulo, já que é tendência em todos os grandes centros.

 

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