Ocupe os corações

Neste domingo, estive como jornalista livre cobrindo o primeiro dia do #ocupeademocracia, ocupação artística no Largo da Batata, em São Paulo, que manterá seu palco e suas mesas abertas durante toda a semana com shows, debates, workshops, apresentações culturais até o dia da votação do processo de impeachment.

Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres

Cheguei cedo, lá pelas 2 horas da tarde, já com a oficina de percussão corporal do Barbatuques rolando. Entre estalos, batidas no peito, palmas e outros barulhos-sons, crianças, moradores de rua, pais e mães, passantes brincavam e entendiam seu corpo como instrumento. Marcelo Pretto, um dos integrantes do grupo falou sobre o corpo político. O corpo como instrumento musical também é politico como forma de se posicionar no mundo através da compreensão e entendimento de suas extensões de postura e sonoras.

Ainda me acostumando com a tarde abafada, comecei a procurar os artistas e público para fazer algumas entrevistas. Fiquei pensando sobre a matéria das perguntas, mas resolvi bater num ponto só. Como você vê esse movimentos dos artistas se posicionando contra o golpe e a favor da democracia?

Depois de algumas boas entrevistas com posicionamentos claros, visões gerais sobre a crise, cobranças sobre o governo e a manutenção da democracia e das conquistas sociais a todo custo, olhei o público que começava a chegar pra ver as apresentações musicais infantis, da Banda Strombólica e do Pequeno Cidadão.

Que belo domingo político nos esperava. Famílias inteiras, crianças aos montes, cangas no chão, cestas de piquenique, brinquedos, cachorros correndo atrás de bolinhas laranjas, camelôs sorridentes, skates, patinetes, amigos se encontrando, enfim, um belo domingo de… democracia.

Foto: Sato do Brasil
Foto: Sato do Brasil
Foto: Sato do Brasil
Foto: Sato do Brasil

 

Foto: Alessandra Vespa

 

Poderia ficar horas narrando esse cenário de tranquilidade e alegria, mas uma pedra no meu sapato me enchia o saco loucamente. Quantos artistas não se posicionam claramente sobre suas convicções? Por que é tão difícil se desvencilhar de velhos chavões que limitam suas narrativas, que sejam participações globais em horários nobres, que sejam contratos vergonhosos cheios de linhas e censuras, que sejam os patrocínios salva-vidas do empresariado da FIESP?

Antes que me julguem, sim, sou artista antes de ser jornalista. Sim, sou artista. E sempre me posicionei, acertando ou errando, sobre o que penso, sobre o que faço, sobre o que quero. Sou artista e sou político. Quem faz arte faz política, sim. Quem acha o contrário, está redondamente em cima do muro. Um muro tão vergonhoso quanto o muro que estão construindo na Esplanada dos Ministérios em Brasília.

Brecht, há muito tempo disse: “O analfabeto político é tão burro que se orgulha e estufa o peito dizendo que odeia a política. Não sabe ele que, da sua ignorância política, nasce a prostituta, o menor abandonado, e o pior de todos os bandidos, que é o político vigarista, pilantra, corrupto e lacaio das empresas nacionais e multinacionais.”

Foto: Maria Candido

Quem faz arte, alimenta a cultura. Segundo Ralph Linton, como termo geral, “cultura significa a herança social e total da Humanidade”. Nós também alimentamos esse testamento, criando conceitos, quebrando partituras existentes, remodelando estados de espírito, inventando novas formas de pensamento, através da brisa de uma música, do mundo fantasioso de um livro, da concretude de uma linha poética, da imagem perturbadora de um filme, das cores sedutoras de um grafite na parede. E cultura é política, sim, desde aquela fração de tempo que algum sujeito oculto recebe essa mensagem pelos seus olhos, pelos seus ouvidos, pelas suas mãos e entende o que significa dentro de seu mundo. E aí, bróder, já foi. Tá no universo das coisas.

Foto: Sato do Brasil

Nós, artistas, temos o direito da inconformidade, da crítica, da poética libertária e do reconhecimento. Mas também, nós, artistas, temos o dever de nos posicionar dentro de nossas crenças, nossa fé, nossa arte e nossos conceitos de vida. É o mínimo que se pode esperar de quem faz arte. Trabalhamos por corações loucos e mentes apaixonadas. Não podemos nos dar o trabalho de enganar, de atrapalhar, de confundir. Temos que ser claros, vigorosos e potentes. Sempre.

E como é prazeroso saber que existem tantos como nós. Domingo, pudemos assistir o Chico Cesar, de quem conheço suas convicções há muito tempo, Taciana Barros, Edgard Scandurra, parceiros de outras lutas, o Lucas Santtana, o Bruno Buarque, Tadeu Meneghini e outros. Conheci o trabalho de As Bahias e a Cozinha Mineira, uma puta banda com as vocalistas trans Assussena e Raquel Virgínia construindo o palco como o altar de um teatro impagável. Também pude ver o trampo do Trio Alvorada, forró clássico, e a banda Xaxado Novo, uma bela mistura de baião, xote, música árabe, uma percussão fortemente marcada e ares de cangaceiros lampiões.

Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres
Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres
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Foto: Sato do Brasil
Foto: Sato do Brasil

Eu escolhi um lado faz um tempo. E que bom que esse lado também tenha Filipe Catto, Tulipa Ruiz, Bixiga 70, Guizado, Tiê, Tutu Moraes, Lira, Marcia Castro, Anelis Assumpção, Curumin, Saulo Duarte, Naná Rizinni, Michelle Abu, Tom Zé, BNegão, Rafael Castro, Rashid, Eddie, Aláfia. E Chico Buarque, Gregorio Duvivier, Fabio Porchat, Wagner Moura, Fernando Morais, Eric Nepomuceno, Paulo José, Leonardo Boff, José de Abreu, Marieta Severo, Flavio Renegado, Tata Amaral, Anna Muylaert, casadalapa e muitos outros. E todos os blocos de carnaval do Arrastão dos Blocos, o Audiovisual pela Democracia, o Arte pela Democracia, o Teatro pela Democracia, o Periferias contra o Golpe, os Saraus, Sergio Vaz, Binho, Z’África Brasil, o Capão Cidadão, Criolo, Emicida, Mano Brown e os Racionais MC’s, os coletivos artivistas, o movimento de moradia, o MST, o movimento feminista, a luta LGBTT, o movimento negro, os indígenas, os estudantes, os trabalhadores e toda a mídia independente da contra-narrativa da pequena grande mídia. Lado de um monte de gente no Brasil inteiro, em todas as praças, ruas, cantos e encantos desse meu País.

Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres

Toda essa caixa de Pandora que o Congresso Nacional e os tribunais de justiça abriram, está reconstruindo um Brasil em que eles não acreditavam mais existir. Um Brasil que estava cansado, aborrecido, silencioso. Mas mexeram com quem tava quietinho. Um Brasil, que agora, bate no peito, cerra os punhos, dança suas danças, evoca seus cantos ancestrais, grita por seu espaço, embala suas crianças numa tarde de domingo. Um Brasil em que se ergue um “Periferias contra o Golpe”, unindo todo o país periférico, um Brasil que ocupa as ruas e o espaço público para mostrar a sua história e sua luta, um Brasil em que os movimentos de moradia como o MST, MTST e o MSTC abrem suas barracas e se juntam aos artistas para solidificar os acampamentos culturais como o que o #OcupeaDemocracia está levantando.

Foto: Sato do Brasil
Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres
Foto: Christian Braga / Jornalistas Livres

 

Porque a arte maior que existe é o amor e o respeito aos direitos que todo ser humano merece ter. Todo e qualquer direito humano. Cada ato pela democracia fortalece essa certeza. Que as conquistas sociais adquiridas a ferro e fogo nos últimos anos, mesmo que seja apenas o começo de uma jornada que tem que ser retomada, estejam no cerne de toda discussão sobre a democracia, sobre a verdade, sobre a ousadia e sobre o nosso País. Sobre os dias de hoje, sobre o que é história e sobre um futuro mais-que-perfeito.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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