Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Passado o momento de tensão e catarse, creio ser capaz de escrever algumas linhas sóbrias sobre o que aconteceu diante dos nossos olhos. Acompanhei tudo em trânsito entre Salvador/BA, onde moro há quase seis anos, e o bairro Recreio dos Bandeirantes, na Zona Oeste do Rio de Janeiro, meu domicílio eleitoral. De um lado da ponte aérea, a capital mais petista do Brasil, onde Lula obteve mais de 70% dos votos. Do outro lado, o berço do bolsonarismo raiz, miliciano, violento, esteticamente repulsivo. Nem parece que fazem parte do mesmo país.
Organizo a reflexão em partes.
1°) Jair Bolsonaro ficou quatro anos em total inoperância administrativa, investindo toda energia em um projeto de destruição nacional. Trinta milhões de pessoas em situação de fome, ausência total de políticas públicas na educação, desestruturação do sistema de assistência social, gestão catastrófica da pandemia, colapso ambiental. Ainda assim, terminou o mandato e chegou competitivo na eleição. Teve 58 milhões de votos e elegeu o governador de São Paulo. Não é pouca coisa. A resiliência de Bolsonaro é um dos fenômenos mais impressionantes da história política brasileira.
No momento em que escrevo este texto, atos golpistas acontecem em diversas regiões do país. Estradas bloqueadas, pessoas em frente aos quarteis pedindo que as Forças Armadas anulem as eleições. No geral, o jornalismo profissional vem tratando de forma adequada essas manifestações, chamando pelo nome que têm (golpismo) e evitando produzir imagens que potencializem os criminosos. Porém, não podemos ser ingênuos a ponto de ignorar a gravidade e o tamanho dessas ações. Não são os 58 milhões de eleitores de Bolsonaro que estão dispostos a romper com a ordem legal. Não dá para saber com exatidão quantos estão mobilizados, mas são muitos. É preocupante. Não conseguiremos seguir em frente sem que os líderes da conspiração sejam punidos. Dessa vez, não pode ter anistia.
Bolsonaro se tornou o epicentro de um imaginário político que já é maior que ele e será disputado nos próximos anos. Zema, Tarcísio Freitas, Moro, Mourão e outros tantos tentarão tirar de Bolsonaro o controle desse imaginário. Não será tarefa fácil.
2°) A vitória de Lula foi apertada, menos de dois pontos percentuais, um pouco mais de 2 milhões de votos. De forma alguma, isso diminui o tamanho do feito. Nunca vimos uso tão deliberado da máquina do Estado para fins eleitorais. A legislação eleitoral foi rasgada, calendário de pagamento de benefícios sociais alterado, eleitores contemplados por políticas sociais foram assediados. Patrões chantagearam seus funcionais. Pastores pressionaram religiosos. A PRF e as PMs paralisaram o país com operações ilegais, fazendo do domingo da eleição um dia caótico. Nada adiantou. Nenhum outro candidato sobreviveria. Só Lula era capaz de vencer Bolsonaro.
Lula foi eleito majoritariamente por pobres, pretos, mulheres e nordestinos. Todos conhecem na prática a importância de um modelo de desenvolvimento que define o Estado como provedor de direitos sociais básicos. Essas pessoas não votaram na esquerda. Votaram no Estado provedor. Lula venceu porque personifica a imagem do Estado provedor.
3°) Lula não foi o único vencedor, assim como Bolsonaro não foi o único perdedor. Tal como acontece na vida, também na eleição há diferentes gradações de vitória e de derrota. Bolsonaro perdeu a eleição, mas não é o grande derrotado. Saiu com 58 milhões de votos, com uma matilha de militantes extremistas leais que o reconhecem como líder. É mais que suficiente para manter a relevância no próximo ciclo e negociar sua sobrevivência política. Assim que perder a prerrogativa de foro, Bolsonaro enfrentará inúmeros processos. Ter a capacidade de incendiar o país, certamente, lhe será útil. Mas se Bolsonaro não foi o maior derrotado, quem foi? Respondo de imediato, de bate pronto, sem sombra de dúvidas. O maior derrotado foi Ciro Gomes, e arrastou junto o PDT.
Ciro atuou no 1° turno como linha auxiliar do bolsonarismo, produzindo conteúdo para a campanha bolsonarista. No 2° turno, ficou calado, isolado e não fez falta. É sempre arriscado decretar morte de político vivo, pois o mundo da política gira rápido, a ponto de, às vezes, capotar. Porém, acho improvável que ainda exista futuro para Ciro Gomes na política. O homem que governou, e bem, um dos principais estados do país, que foi ministro, que saiu das eleições de 2018 com mais de 13 milhões de votos, foi reduzido a pó. Destruído pela inabilidade e pelo ressentimento. Não deixa de ser lamentável.
Do outro lado, Simone Tebet, junto com Lula, é a grande vitoriosa. Começou a disputa tendo que lidar com a desconfiança do próprio partido. Foi boicotada. Performou bem nos debates e no 2° turno não pensou duas vezes antes de seguir sua intuição e subir com convicção e dedicação no palanque de Lula. Tebet consegue combinar a agenda feminista da igualdade de gênero sem cair no militantismo que tanto atrai antipatia da maioria da população, inclusive das próprias mulheres.
Provavelmente, assumirá ministério de relevância que lhe dará protagonismo. Estará constantemente na mídia. Se o governo for bem-sucedido, colherá junto os louros. Se for um fracasso, pode pular fora e se dizer enganada. Posição muito confortável. Já está cacifada para a disputa de 2026.
4°) A eleição brasileira reforçou a tendência mundial de esgotamento da linguagem que define o ecossistema político nos termos da polarização “direita x esquerda”. Cada vez mais, a disputa se dará entre, de um lado, o campo democrático ampliado e, do outro, o campo autoritário fascistóide. Lula parece ter entendido perfeitamente essa realidade. Conseguiu reunir ao redor de si um espectro tão amplo de apoio que vai de Boulos a Meirelles. Agora, na fase da transição, entregou a coordenação do processo a Geraldo Alckmin, o que sugere a relevância que o vice-presidente terá no mandato. Tudo indica que Alckmin será uma espécie de primeiro-ministro, trabalhando no cotidiano do governo, nas negociações de varejo, enquanto Lula se dedica às grandes agendas globais. Não precisa ser vidente pra saber que já já as lideranças do PT começarão a manifestar incômodo com o protagonismo do vice-presidente. A ver como Lula conciliará o desejo de hegemonismo dos companheiros com as necessidades políticas desses novos tempos.
5°) É chover no molhado dizer que o governo Lula enfrentará inúmeros desafios. Terá que lidar com uma base social fascitóide numerosa e com capacidade de mobilização e organização. Precisará desmontar a estrutura bolsonarista que hoje corrompe as polícias e as Forças Armadas. Porém, o maior desafio será mostrar que “democracia” não é valor abstrato, mas, sim, direitos manifestados na realidade. A população não vive de conceitos, não se alimenta de ideias. As pessoas têm demandas concretas por bem-estar social e material. Se Lula conseguir transformar a abstração da “democracia” no carrinho de supermercado cheio, na pizza no shopping no final de semana, no emprego de qualidade, no acesso à cultura e à educação, isolará o bolsonarismo ao nicho social formado por uma minoria de extremistas barulhentos. Se não conseguir, a extrema direita será favorita nas eleições de 2026, com ou sem Bolsonaro.
Fato é que ainda não foi dessa vez que o tal do mundo se acabou. Amanhã, quem sabe?
Bolsonaro.
Fato é que ainda não foi dessa vez que o tal do mundo se acabou. Amanhã, quem sabe?