O Youtube como espaço para enfrentar os negacionismos históricos

Um adolescente que gostasse de História na primeira década dos anos 2000 teria a sua disposição grandes livros como “Eram os deuses astronautas”, “Guia politicamente incorreto da História do Brasil” ou – caso ler não fosse muito o seu tipo – o canal da TV paga The History Channel. Eu li todos eles e vivia grudado na televisão assistindo como os alienígenas teriam construído as pirâmides do Egito. Acontece que, nos dias de hoje, um jovem tem no cardápio da sua curiosidade uma infinidade de opções no Youtube, onde pessoas nos contam sobre o passado e revelam para o mundo tudo aquilo que a escola teria escondido de nós. Ironias à parte, muitos desses novos canais sobre história carregam algo em comum: não se trata de história. Trata-se de uma negação do passado, uma distorção do conhecimento histórico produzido nas universidades que legitima um discurso que tem muito mais relação aos projetos políticos de direita e extrema-direita do nosso presente. Mesmo que essa não seja a intenção, em alguns casos. Mas como podemos superar os negacionismos históricos? Resolvi perguntar para historiadores que decidiram criar iniciativas de divulgação científica do campo da história por meio de canais no Youtube e resolveram sair do “conforto do seu Lattes”, como brincou Icles Rodrigues.

A força do passado no presente

Em 2015, Icles inaugurou o canal Leitura ObrigaHISTÓRIA com o propósito de apresentar resenhas de livros historiográficos, como fazia no blog que deu origem ao canal. Com o passar das visualizações, os vídeos começaram a abordar temas mais amplos, como as definições de esquerda e direita ou de fascismo. Além disso, incorporaram-se debates da área da Antropologia, com a antropóloga Mariane Pisani, e da História das Mulheres, com a historiadora Luanna Jales.

Para Icles, os negadores do passado “entenderam há bastante tempo que, para conquistar corações e mentes, o domínio da narrativa sobre o passado precisa ser tomado”. Isto acontece porque as memórias coletivas são fundamentais na construção da identidade de um grupo. Nós nos identificamos como parte de um todo porque compartilhamos essas memórias – as comemorações nacionais, como o 7 de setembro, a figura de Tiradentes, os mundiais vencidos pela seleção brasileira de futebol, as tradições culturais, enfim, a lista é longa e variada. As memórias são múltiplas – e conflitantes. Os historiadores têm o papel de manter a pulga atrás da orelha sobre essas memórias, sempre questionando as certezas do passado que uma sociedade possui. Os resultados dessas perguntas são alcançados por métodos específicos e a partir das fontes históricas, ou seja, de tudo aquilo que resistiu à força do tempo e chegou até nós, aqui no presente. Contudo, para os grupos negacionistas conseguirem seus objetivos, precisam antes deslegitimar a produção científica dos historiadores, com as afirmações de que são discursos enviesados que apresentam apenas um lado da História.

“Acontece que erro não é lado”, afirma Icles. “Negar fatos historicamente estabelecidos e comprovados por pesquisas sérias – que, aliás, são completamente ignoradas pelos negadores que normalmente têm preguiça e má vontade de lê-las – é uma tentativa de fazer o público acreditar que foi induzido ao erro por grupos mal intencionados, e que o revisionista estaria trazendo uma verdade suprimida, o que na grande maioria das vezes é uma mentira deslavada”.

Os historiadores do canal História Bar & Lanches compartilham essa visão e complementam, dizendo que “faltou, sobretudo no ensino básico, explicar como o conhecimento histórico é produzido. Como ninguém conhece os debates e a existência de métodos e interpretações diversas, fica realmente fácil vender essa ideia”.

Com a vitória da campanha presidencial de Jair Bolsonaro, mergulhada em discursos de ódio e saudosismos a um passado marcado pela tortura e pela falta de liberdade de expressão, os historiadores Giorgia Burattini, Patrícia Moreira, Jonathan Portela, Vanessa Neri e Victor Godoy constataram que “nós, historiadores, havíamos fracassado”. Do descontentamento e do incômodo surgiu o canal História Bar & Lanches, o HBL, se valendo do conhecimento histórico para responder questões atuais numa linguagem simples de mesa de bar.

Embora os negadores do passado sejam “lunáticos completamente dignos de descrédito absoluto”, como constatou Icles, suas manobras causam efeitos práticos e devastadores na sociedade brasileira contemporânea. Para os historiadores do HBL, “o grande perigo do negacionismo está na isenção de responsabilidade histórica”. As afirmações negacionistas atrasam discussões importantes que poderiam ser feitas sobre as consequências de certos contextos do passado no nosso presente. Famílias de desaparecidos políticos e vítimas da ditadura civil-militar, que lutam pela responsabilização do Estado e dos torturadores há anos, precisam lidar com a negação do evidente: houve ditadura e ela foi perversa. “Quando teorias da conspiração ressuscitam ou criam debates absurdos, damos um passo para trás nos processos de reparação e de superação do passado”. E completam dizendo: “Nós não estamos criando os elos entre justiça, história e memória, por exemplo, necessários para que as reparações aconteçam”.

Estamos vivendo um contexto no qual os Lucas Silva e Silva falam diretamente das instâncias máximas do poder ou têm seus discursos respaldados por quem ocupa posições no governo. Trocaram seus gravadores pelo Twitter e pelo Youtube. Suas preocupações não estão no futuro do país e sim num passado que nunca existiu, porque negar o passado é uma ferramenta política do presente. “É um cenário preocupante”, afirma Icles. “Mas não é como se ele tivesse começado em 2019 […] O que vemos hoje é a colheita de um fruto plantado e adubado há uma década. E o que não falta ultimamente é adubo pra isso”.

Caminhos para enfrentar o negacionismo histórico  

A negação do passado não surgiu nas eleições passada. Os livros que li na adolescência já distorciam o conhecimento histórico produzido na academia e desde a década de 1940 já se negava a existência do Holocausto. Mas hoje há o diferencial do acesso amplo à circulação dessas ideias por meio da internet. Temos a facilidade de ser mal-informados acerca da história. Enquanto as conspirações e negacionismos históricos foram adubados na última década no solo brasileiro, os historiadores, cientistas do passado, teriam negligenciado suas descobertas e avanços sobre a história com a sociedade, deixando aberto o espaço que foi preenchido por pessoas mais interessadas em entreter e contar causos engraçados de eventos históricos por meio de livros, num primeiro momento, e de canais no Youtube, posteriormente. As complexidades das reflexões históricas ficaram, em sua maioria, nas torres de marfim juntas às mesóclises e próclises das maçantes frases dos acadêmicos.

Para Icles, do canal Leitura ObrigaHISTÓRIA, “a produção de conhecimento histórica feita por não historiadores é válida, e há excelentes livros que se encaixam nesse paradigma”. Mas o número de produções de baixa qualidade é também considerável e a preocupação dos historiadores em manter um ciclo de conversa entre si mesmos, negligenciando o diálogo com a população gerou uma “carência de obras acessíveis ao grande público, e essa lacuna é preenchida, especialmente, por jornalistas, que muitas vezes estão mais preocupados em entreter ou contar uma história anedótica, um ponto fora da curva, do que refletir sobre processos históricos, permanências e afins”.

Os historiadores do HBL consideram o trabalho colaborativo, multidisciplinar, uma saída para a dificuldade da comunicação entre academia e sociedade. “Pegando o exemplo dos documentários ou do YouTube. Um(a) historiador(a) pode realizar a pesquisa, produzir entrevistas, criar um roteiro, mas essa pessoa não necessariamente precisa dirigir, editar, criar uma trilha sonora. É preciso produzir conteúdo com um grupo multidisciplinar […] cabe o esforço de dialogar e construir coletivamente”.

As mesmas plataformas que impulsionam os discursos negacionistas podem servir como caminhos possíveis para enfrentá-los. Na visão dos historiadores do HBL, “gostemos ou não delas, as plataformas estão aí e precisamos ocupá-las. Não é possível que um historiador ou historiadora da atualidade ainda se limite aos artigos para revistas de circulação acadêmica, aos seminários e aos congressos fechados. Hoje, é necessário se comunicar com a população não-universitária e o YouTube apareceu como uma ferramenta viável, assim como podcasts e mídias sociais em geral”.

Contudo, não podemos esperar que os historiadores tenham a habilidade de se comunicar com o público fora do suporte do texto acadêmico. “Não é que todos os historiadores têm que vir pra internet”, aponta Icles Rodrigues. “Há quem não tenha a menor condição de trabalhar na divulgação científica […] Mas isso não quer dizer que você deva ficar no conforto do seu Lattes esperando que as coisas se resolvam. Apoiem iniciativas que já ocorrem, seja financeiramente, seja compartilhando”.

O desafio frente aos negacionismos históricos é grande, pois estes discursos têm respaldo institucional e, no caso de canais de Youtube e documentários, há também o apoio financeiro, que não acontece na mesma medida nas iniciativas sérias e preocupadas com o conhecimento científico. Os historiadores, acostumados a lidar com a sociedade e o tempo, se veem diante de grupos sociais que negam seus estudos e o tempo é cada vez mais curto para reverter esse cenário. “Eu entendo que seja difícil”, afirma Icles, “manter a docência, a pesquisa e, ainda por cima, pensar em livros de maior alcance é uma tarefa bastante complicada. Contudo, há acadêmicos que têm plenas condições de dar a cara à tapa e optam por não fazê-lo. Espero que o cenário atual motive mais estudiosos a virem pra linha de frente”.

Enquanto a cultura histórica não tiver a participação de pessoas sérias e preocupadas com o conhecimento ocupando plataformas de maior alcance, os negadores do passado terão espaço livre para adubar o solo com mentiras históricas. O resultado disso está sendo colhido agora, mas é uma erva daninha que continuará a crescer. O Youtube é apenas um dos espaços possíveis para o enfrentamento aos negacionismos históricos. “As consequências estão aí: teorias da conspiração tomando o espaço público e se tornando autoridade. Isso sem dúvida precisa mudar”, alerta os historiadores do HBL.

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