O silêncio letal dos homens de “Sharp Objects”

Assistir à TV nunca foi difícil, como homem. Minhas memórias de infância são cheias de galãs de novelas (embora, desde pequeno, eu sempre gostasse mais das vilãs), meus filmes preferidos tinham heróis machões e as primeiras séries estrangeiras que eu vi (Lost, Heroes, House M.D.) se apoiavam nas jornadas dos homens em seu centro para contar suas histórias. O resultado é que essas histórias eram, por mais incríveis e complexas que pudessem ser, variações de uma jornada comum marcada por privilégios comuns.

Este é um dos grandes motivos pelos quais assistir à TV, hoje em dia, é tão fascinante – com o foco das histórias finalmente começando a cair com mais frequência sobre as mulheres, narrativas diferentes, marcadas por eventos recorrentes diferentes, começam a surgir. Um dos poderes excepcionais da ficção é fazer questionar o nosso lugar no mundo e as nossas atitudes ao refleti-las em personagens na tela. Um espectador atento sempre sai de uma (boa) história entendendo melhor o papel que desempenha na sociedade e a forma que ele escolhe navegá-la.

“Sharp Objects” foi uma dessas histórias, para mim. A minissérie da HBO, inspirada no best-seller de Gillian Flynn, chega ao seu último capítulo neste domingo (26), desenrolando a história da repórter Camille (Amy Adams), que retorna para a sua cidade natal (e para a sua família perturbada) a fim de investigar dois casos de assassinato. Através dos flashbacks da adolescência de Camille na minúscula Wind Gap, e da investigação dos efeitos que essa época causaram nela, “Sharp Objects” entrega ao espectador não só uma grande oportunidade de sentir empatia por uma personagem como esta, mas também uma condenação potente do silêncio – e, especialmente, do silêncio masculino – frente ao abuso.

Chris Messina como o Detetive Richard Willis em “Sharp Objects”

Ao menos em sua superfície, “Sharp Objects” não é uma história sobre homens violentos atacando mulheres (sexual, física ou psicologicamente). Em sua versão do sul dos EUA, é uma opressão mais sutil e um estereótipo mais insidioso que faz com que as mulheres se tornem “abelhas-rainhas” cujos ferrões só servem para machucar umas às outras. É um mecanismo de sobrevivência para elas, que cresceram em uma sociedade patriarcal perturbadoramente obcecada com seu simulacro de feminilidade, em todos os conceitos limitantes que ele compreende.

Ao mesmo tempo, a série que a própria autora Gillian Flynn ajudou a adaptar de seu livro entende que esse sistema só é perpetuado com a assistência de um conceito de masculinidade que inclui um fechamento emocional que é desenhado para se transformar em silêncio frente a qualquer evidência de abuso que quebre a noção de normalidade na unidade familiar ou comunitária. Nenhum exemplo disso é mais claro do que o de John Keene (Taylor John Smith), irmão de uma das garotas assassinadas – a cidade toda suspeita que o garoto é culpado pelo crime, simplesmente porque ele chora em público, fugindo do estoicismo (do silêncio) que é exigido dos homens mesmo quando eles passam por uma grande perda.

Como o sétimo episódio de “Sharp Objects” demonstra ao mergulhar no personagem de John, essa pressão pelo silêncio tem consequências sérias para o seu psicológico – mas a série entende, essencial e impactantemente, que quase nunca o prejudicado por esse conceito de masculinidade tóxica e sufocante é o homem. Na maioria das vezes, a noção de masculino que eles carregam faz o que foi projetada para fazer: machucar mulheres.

Taylor John Smith como John Keene em “Sharp Objects”

É o que acontece com o silêncio do Xerife Bill Vickery (Matt Craven) e com o silêncio de Alan Crellin (Henry Czerny), quando fica claro, também no sétimo episódio, que eles sabiam do abuso enfrentado por mulheres que faziam parte de sua família ou sua comunidade. Ao evitarem abalar um status quo que os beneficiava, eles se tornaram cúmplices perversos de um crime que não é, primariamente, deles – e a culpa que claramente os consome não é o bastante para redimi-los. Não quando, ao mesmo tempo, “Sharp Objects” nos obriga a olhar para as consequências devastadoras desse silêncio nas mulheres que sofreram o abuso sobre o qual eles não disseram nada.

O caso do Detetive Richard Willis (Chris Messina) é um pouco mais complicado. Após ser chamado de Kansas City para ajudar a polícia da pequena Wind Gap na investigação dos assassinatos, ele se envolve sexualmente com Camille, e começa a investigar o passado dela para entender seus comportamentos “bizarros”. Ele descobre o abuso que ela sofreu, e descobre a forma como esse abuso pode estar se perpetuando, mas não consegue deixar de lado o seu orgulho quando a encontra com outro homem na cama. Richard deixa para Camille as evidências que ele encontrou, mas a rejeita e insulta mesmo depois de descobrir o que ela viveu.

O detetive pratica um silêncio mais ativo, por mais que isso possa parecer contraditório, que os outros homens de “Sharp Objects”. Ao se mostrar incapaz de agir de qualquer forma reparativa ou compreensiva para com a mulher com a qual ele se envolveu, Willis perpetua um ciclo de violência (sexual, física, psicológica, verbal) que ele sabe que ela enfrentou. Ao não dizer ou fazer nada que quebre esse ciclo, ele divide a culpa com todos os homens de Wind Gap pela persistência dele – mesmo que se considere diferente e “acima” dos costumes arcaicos da pequena cidade.

Matt Craven como o Xerife Bill Vickery em “Sharp Objects”

Assistir a “Sharp Objects” é testemunhar em primeira mão o quanto a existência passiva dos homens é capaz de destruir, ainda que de forma paulatina, as mulheres a sua volta. Nenhuma peça de ficção da qual eu me lembre foi capaz de exemplificar melhor o que grupos feministas dizem sobre como não é preciso ser um agressor, um estuprador ou um machista inveterado para se beneficiar do sistema que posiciona mulheres como tudo, menos seres humanos.

Nenhum dos homens da minissérie da HBO, até onde sabemos, é um abusador – mas o seu silêncio fere, e a sua inação ofende. Como homem, assisti-los em cena e não entender isso, vê-los causar tanto estrago e não refletir sobre tudo o que eu já deixei de fazer simplesmente porque era confortável, seriam oito horas jogadas fora. Conforme ela chega ao seu último capítulo, se “Sharp Objects” deixa qualquer legado a nós, homens que a assistiram com atenção e empatia, que seja esse: nossa existência, por si só, machuca. O que podemos fazer, com a nossa voz e as nossas ações (nunca o nosso silêncio frente ao abuso), é nos esforçar para que machuque menos.

COMENTÁRIOS

7 respostas

  1. Obrigada, Caio, por essa reflexão tão profunda sobre a série. Ontem assistimos ao último capítulo, e ficou mais claro ainda o tamanho do estrago causado nas mulheres de Wind Gap. Já estou sentindo saudades de Camille…

  2. Achei sua análise vazia……toda contraditorac….q qu perca de tempo

  3. Adorei a reflexão, quase não vi o pessoal comentando sobre os homens da série. Por mais que nenhum deles eram abusadores, se mantiveram em silencio e permitiram tudo se perpetuar.

    Gostei de ler a reflexão de um homem sobre o assunto.

  4. Ótima reflexão. Nao vi por ai destacarem essa passividade masculina da série.
    Achei muito interessante essa percepção do Richard, de mesmo ciente de tudo da triste trajetória da Camille, não conseguiu enfrentar a cena dela com outro na cama, não foi capaz de dialogar e apenas rebaixa-la um pouco mais.

    Adorei a matéria,
    Parabéns

  5. Adorei seu texto. Me chamou a atenção sobre a apatia dos personagens masculinos. Mas, achei incrível o seu ponto de vista.

  6. Que análise perfeita. Não tinha captado. Sinceramente não achei o livro muito bem escrito, e muitas falhas de construção de personagem e de roteiro me incomodam bem. Mas este aspecto que você analisou me parece agora perfeito

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