O que o MTST tem a nos ensinar?

Fotos: Thallita Oshiro / Jornalistas Livres

Por Thallita Oshiro para os Jornalistas Livres

Dessa vez eu queria ir só para me divertir, ficar no calor das pessoas, abraçar amigos e conhecer de perto mais histórias do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) que ontem comemorava seus 20 anos. Eu não queria me preocupar com equipamento ou com o desenvolvimento de uma pauta focada nos artistas. Mas a quem quero enganar? Sou fotógrafa documentarista e não iria perder a chance de registrar aquele momento.
Quando cheguei, o evento já havia começado. Muitos amigos mídia ativistas que eu não via há tempos estavam presentes. Entrei sem problemas na área restrita na parte de trás do palco e logo subi no trio. Havia cerca de 20 mil pessoas. Um evento assim me sensibiliza, mas logo precisei descer para ver os rostos de perto.

 

A chuva veio pesada para atrapalhar, acompanhada de todo tipo de previsão meteorológica. Nesse momento, surge um grito da multidão: “Pode chover, pode molhar. É no molhado que o sem teto vai ficar”. Procurei o homem que liderava o coro para conversar. “A gente não tem medo de luta, menina. A gente vai ter medo de chuva? Hoje é comemoração.” E assim seguiram em festa até a saudação dos primeiros raios de sol.

Tive a oportunidade de conversar com integrantes do movimento oriundos de Brasília, de São Bernardo do Campo, de Sergipe, do Piauí e de São Paulo. Percebi que quando você pergunta a um sem teto de onde ele é a resposta imediata sempre é a mesma: sua ocupação, depois o seu estado e a cidade. O sentimento de pertencimento tem haver com um tipo vinculação política e afetiva com o território ressignificado pelas próprias mãos dos militantes. “Venha conhecer o Novo Pinheirinho, você vai ser muito bem recebida lá também. Sou de São Bernardo, a Senhora conhece? O que estamos fazendo lá é histórico. Não tem vagabundo no nosso movimento não. Só família e trabalhador. Obrigada por fotografar nossa festa. A luta é de todos.”

O que parecia ser apenas um show de Caetano Veloso se transformou em uma forma de divulgação da marca e da luta do movimento dos sem teto. Dispersos na multidão, era possível observar a militância puxando palavras de ordem e conversando com as pessoas. Pulavam e comemoram, sem abandonar a missão de tornar aquele momento em mais um episódio da saga dos sem teto que trazem à luz do dia as desigualdades dos principais centros urbanos do país. “A gente prometeu pro Caetano que ele viria hoje, porque ele foi humilde de amassar barro para conhecer a nossa luta. Está cheio de gente que agora conhece o MTST.” Declara um militante diluído no mar de gente.
Para alguns olhares, o evento de ontem era apenas um carnaval. Uma festa com famosos que frustra os “bem delimitados” propósitos políticos do movimento social. A verdade é que desde a ascensão dos setores conservadores responsáveis pelo golpe há uma crescente aproximação da classe artística em relação às causas populares.

Para um ou outro que se localiza entre a esquerda, ainda existe, infelizmente, certo autoritarismo que cega diante da complexidade dos processos políticos e sociais. Em se tratando de política, a estreiteza é um erro. Foi ela que ajudou a gente a chegar nesse buraco do Estado de exceção. Em se tratando de cultura, o autoritarismo ganha uma feição bem conhecida.

O povo simples e pobre seria sempre a retaguarda de uma vanguarda cultural. Para isso, uma boa dose da própria história dos movimentos sociais brasileiros ajuda a resolver a chaga de uma visão limitada. Lembremos da pedagogia desenvolvida no interior do Movimento dos Sem Terra (MST), que educou intelectuais brasileiros. Isso mesmo: educou os intelectuais brasileiros a saírem das amarras da academia burocrática e a forjar um pensamento libertário. Se Caetano aprende com o MTST, que bom!

Acredito que minhas lentes ajudaram a registrar um episódio importante da história dos movimentos sociais. Na fotografia, é muito importante entrar numa relação de alteridade com o fotografado. Pude perceber que ontem a atitude dos sem tetos era, antes de mais nada, absolutamente consciente. Sabiam a importância de divulgar a luta deles. Ganhar mais gente para a causa. Dispersos de forma inteligente na multidão, evoluíram para o último canto na despedida de Caetano no término do show, quando 20 mil gritavam, em uníssono: “Aqui está o povo sem medo, sem medo de lutar.” Viva a pedagogia popular.

Esse texto exprime a opinião pessoal da autora. Aqueles que tiverem opinião contrária, e quiserem contribuir com o debate, tem aqui um espaço aberto. Envie sua opinião para [email protected]

 

 

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