O que fazer com o militar?

É preciso revisar o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas

Por Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

O Instituto Quaest aponta que, entre janeiro e agosto, a confiança dos brasileiros nos militares despencou, passando de 43% para 33%. A queda coincide com a tentativa golpista de 8 de janeiro e também com o caso de corrupção das joias envolvendo o ex-presidente Jair Bolsonaro e militares de alta patente.

A Comissão Parlamentar Mista de Inquérito (CPMI) do Congresso Nacional, que apura responsabilidades nos atos golpistas de 8 de janeiro, tem revelado uma ampla atuação nada democrática e marcada pela corrupção por parte de setores fardados.

A degradação da imagem do militar parece não ter fim e a sociedade brasileira não sabe o que esperar dos enfileirados.

É neste contexto que o livro “O que fazer com o militar. Anotações para uma nova defesa nacional”, de Manuel Domingos Neto (Gabinete de Leitura, 2023) se coloca como obra indispensável e essencial para este momento em que vive o país e para o futuro da própria sociedade brasileira.

Doutor em História pela Universidade de Paris, há mais de 50 anos Manuel Domingos Neto se dedica à temática militar, sendo hoje um dos principais especialistas brasileiros, se não for o principal, nesta temática.

No livro que acaba de lançar, ele consegue algo que parecia impossível: abordar um tema complexo e aparentemente distante do interesse do cidadão comum de forma simples e direta, sem perder o rigor acadêmico. As características do texto se explicam. Além de ter sido professor universitário – Universidade Federal do Ceará e Universidade Federal Fluminense – ele também é o fundador e ex-presidente da Associação Brasileira de Estudos de Defesa (ABED).

“O que fazer com o militar” é destinado aos leitores não familiarizados com a temática. Aspectos complexos são abordados em texto de fácil leitura, com o livro apontando a necessidade de uma reforma militar fundada em uma nova concepção de Defesa Nacional.

Enquanto o debate atual em alguns setores é travado apenas em torno de se a CPMI dos Atos Golpistas pode acabar em pizza ou se os militares envolvidos serão julgados e condenados, este livro de Manuel Domingos Neto mostra que o problema é muito mais complexo e exigirá por parte do Estado brasileiro importantes posicionamentos.

Talvez uma das principais mudanças, que o autor anuncia na própria epígrafe do livro, valendo-se de um pensamento de Leonardo da Vinci, é a necessidade de conhecermos e perdemos o medo em relação aos militares e à temática equivocadamente considerada exclusivamente militar.

“O Estado precisa definir o papel das corporações militares, hoje envolvidas em múltiplas tarefas em prejuízo do preparo para enfrentar agressores estrangeiros. Sem uma reforma militar, seriam vãos novos investimentos em defesa”, afirma.

O autor considera o militar limitado para formular e conduzir a Defesa do Brasil. Ele sustenta que, prevalecendo o ponto de vista castrense neste domínio, a democracia estará sob risco e o país persistirá exposto à ganância estrangeira. “Não será voz ativa no cenário internacional e comprometerá o desenvolvimento socioeconômico”, frisa.

Com o conhecimento e a experiência de quem viveu a vida militar por dentro e foi perseguido, preso e torturado nos idos do golpe civil-militar de 1964, Manuel Domingos Neto defende que apenas o poder político detém legitimidade para definir e conduzir a Defesa, lembrando, no entanto, que há a necessidade de se superar o despreparo técnico do aparato estatal e a indisposição para quebrar a rotina histórica que envolve o mando militar.

Ao longo de 28 capítulos, distribuídos por 226 páginas, o autor consegue algo raro entre os intelectuais e acadêmicos que trabalham com esta temática: seu texto flui, é agradável e nele estão presentes os principais fatos que marcam a nossa história e a história mundial, sem perder de vista os dias atuais.

Os dias correntes aparecem em importantes capítulos como o “Diálogo” civil-militar, “Cartas de Lula ao militar” e “Artigo 142, o monstrengo”.

Ao contrário de outras obras que buscam um suposto distanciamento do objeto/temática estudada, Manuel Domingos Neto rompe com essa visão, deixando claras as razões do livro e também as razões pelas quais estudou o militar e como fez esse estudo.

Os capítulos iniciais são importantes para introduzir os pontos fundamentais do livro: a necessidade de uma reforma militar, o erro em se desconhecer o militar, os “transtornos de personalidade funcional” que os militares enfrentam, a “modernidade militar” e o que tem sido esta “modernidade” em um país arcaico como o Brasil.

Três, no entanto, são os capítulos que considero essenciais: “Braço de quem? Mão de quem?”, “Por uma nova Defesa” e “Menos tropa, mais Defesa”.

No primeiro, Manuel Domingos mostra como “o Estado brasileiro, nascido em 1822, nunca dispôs de aparato de força compatível com o papel que lhe caberia na ordem mundial porque não expressou a coletividade emergente; não deteve nem precisou deter capacidade de dissuasão de estrangeiros. Seu sistema defensivo integrou o esquema de potências hegemônicas. No limite, exibiu força diante de vizinhos frágeis e sem pretensões imperiais. Sua subalternidade, prolongada até a República, explica o fato de, excetuados os afundamentos de navios por submarinos de Hitler, não ter sido agredido por estrangeiros poderosos em mais de duzentos anos”.

O autor destaca ainda que o lugar comum no discurso diplomático de exaltar a índole pacífica dos brasileiros não se sustenta, lembrando que além de não haver evidencias de que sejamos mais ou menos propensos à violência do que outros povos, “se o Estado promovesse a capacitação técnica, científica e industrial para a produção de armas e equipamentos, as potências dominantes não teriam sido dóceis”. Diante disso, Manuel Domingos demole uma visão presente em nossa sociedade: “A ideia de um Estado e uma sociedade amantes da paz encobre a subalternidade ao longo de duzentos anos”.

“Por uma nova Defesa” é outro capítulo de fundamental importância. Nele o autor deixa claro como um país não pode se defender apenas com tropas equipadas. “A sensibilidade política é determinante”, assinala, ao lembrar que a Defesa Nacional é uma política pública que não pode ser entregue a amadores nem a servidores treinados para comandar tropas e manusear armas. Daí considerar que “sem formar civis especializados em Defesa Nacional e em assuntos militares, o Estado brasileiro persistirá refém da caserna que, tendo fracassado no estabelecimento de um sistema defensivo capaz, não abdica da condução dessa política pública”.

Ao contrário de muitos autores que se limitam a identificar o problema, Manuel Domingos encerra este capítulo apontando uma série de medidas a serem adotadas.

Não é exatamente esse tipo de contribuição que deveria ser esperada dos estudiosos e intelectuais brasileiros nesta e em tantas outras matérias?

A demolição de mitos prossegue no capítulo “Menos tropa, mais Defesa”, um dos que tem gerado mais polêmica entre os militares. Nele, o autor mostra como “a relação entre contingentes armados, território, população e dimensão da economia não tem serventia para medir capacidades militares”. Para comprovar o que diz, lembra que “um país com muitos soldados equipados e treinados, mas dependente de compras de material estrangeiro é caudatário das decisões de seu fornecedor”.

Lamentavelmente é esta a situação do Brasil. As verbas destinadas a reequipar nossas tropas e a própria defesa acabam sempre adquirindo equipamentos no exterior, ficando o país vulnerável.

A título de exemplo, basta lembrar que nos últimos 15 dias, o economista austríaco, Gunther Fehlinger, lobista pró-OTAN, e a própria embaixadora dos Estados Unidos no Brasil, Elizabeth Bagley, deixaram claro que o país pode ser alvo de problemas envolvendo a sua integridade territorial se insistir na aproximação com o BRICS, agora ampliado de seis para 11 membros. Não houve desmentido por parte da OTAN e o tweet da embaixadora foi considerado pela mídia corporativa brasileira apenas “enigmático”. Já o governo brasileiro preferiu desconhecer o assunto.

Por tudo isso, o livro de Manuel Domingos Neto é crucial não só para os dias atuais, como também para se pensar o futuro do Brasil enquanto nação soberana.

O golpe que derrubou a presidente Dilma Rousseff em 2016, está mais do que provado, tinha como objetivo se apoderar do pré-sal, destruir a Petrobras e as principais empreiteiras nacionais, travando assim o nosso desenvolvimento. Na época, o Brasil se encontrava na condição de sexto maior PIB do mundo, tendo caído para a 12º posição em seis anos, exatamente no período de governo do obscuro vice usurpador Michel Temer e depois do ex-capitão de extrema-direita, Jair Bolsonaro.

O golpe de 2016, como se sabe, contou com o patrocínio de países imperialistas, Estados Unidos à frente.  Razão pela qual nada mais urgente do que se repensar a dependência externa das Forças Armadas em relação ao fornecimento de equipamentos militares.

Igualmente importante, assinala o autor, é se ter a clareza de que a arte de contornar a guerra sem abdicar da vontade própria não é especialidade do guerreiro, mas do político. Daí enfatizar que “corporações militares são ferramentas da política externa, não têm competência para dirigir os negócios da defesa.”

A principal conclusão a que chega Manuel Domingos Neto é a da necessidade de se revisar o papel, a organização e a cultura das Forças Armadas, “porque o Brasil precisa inserir-se dignamente na ordem internacional e as novas gerações devem ser poupadas das exorbitâncias do quartel”.  Exorbitâncias como as que vivemos agora, quando uma parcela dos militares e outra de civis trabalha abertamente em apoio a um “acordão” para livrar colegas de farda do indiciamento e de serem julgados pelos que fizeram no 8 de janeiro ou pela corrupção patrocinada por Bolsonaro no caso das joias.

Alterar esta situação só ocorrerá com uma ampla e consciente mobilização da sociedade. Mas ela só ocorrerá quando o medo ao militar for vencido e der lugar a uma formulação mais ampla em relação ao seu papel e também em relação à Defesa Nacional.

Esse livro representa uma enorme contribuição nesses dois sentidos. E é a razão pela qual precisa e deve ser lido por todos os brasileiros e brasileiras que amam verdadeiramente o Brasil.

“O que fazer com o militar” será lançado em Fortaleza, no próximo dia 20. Em seguida, haverá lançamentos em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre. O autor percorrerá as principais capitais com intensa agenda de debates.

O livro pode ser adquirido através do link da editora:

https://gabinetedeleitura.com/

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS

O direito do trabalho ainda respira

Danilo Santana, estudante Direito da PUC-SP O Direito do Trabalho ainda respira. Mesmo que esteja por aparelhos, ainda existe uma salvação, apesar dos esforços do