POR RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Já há algumas semanas que as avaliações sobre o terceiro governo Lula são praticamente consensuais: a fragilidade do governo estaria na “articulação política”, entendida como a prática de construir acordos com o Congresso Nacional. Neste texto, pretendo confrontar essa avaliação que, na minha percepção, é insuficiente para a compreender a situação.
Até concordo que há problemas na tal “articulação política”, assim como há problemas na comunicação institucional. Talvez, de fato, Alexandre Padilha, Rui Costa e Paulo Pimenta não estejam dando conta do recado.
Pode ser que Lula esteja preocupado demais com as questões internacionais, dedicando pouca atenção ao varejo da política. Porém, acredito que nada disso seja determinante.
E se a partir de hoje, Lula passasse a dar expediente de 16 horas diárias no Palácio do Planalto, só recebendo deputados e senadores pra conversar? Ainda assim, não resolveria completamente o problema.
Se em uma canetada o governo demitisse Alexandre Padilha, Rui Costa e Paulo Pimenta e nomeasse um super “articulador político”(quem seria?) o problema também não se resolveria. Talvez melhorasse alguma coisa, mas o problema real permaneceria.
O buraco é bem mais fundo.
O terceiro governo Lula ocupa um lugar na história do Brasil muito diferente do lugar ocupado pelos dois primeiros governos.
O golpe parlamentar de 2016 inaugurou uma quadra histórica marcada pela fragilização da instituição Presidência da República.
As tais “pedaladas fiscais” que consistiram na acusação formal contra Dilma Rousseff nada mais eram do que a criminalização da ação anticíclica da Presidência da República. Portanto, como chefe de Estado e chefe de governo, Dilma não podia conduzir a economia do país do modo como achava adequado. O golpe foi o primeiro grande ataque às atribuições do Poder Executivo. De lá pra cá, a coisa só piorou.
Vejam:
- Em 15/12/2016, o Congresso Nacional promulgou a Emenda Constitucional 95, que limitou por 20 anos os gastos públicos a partir de métricas relacionadas ao mercado, como a inflação. Na prática, a lei tirou do presidente da República o poder de planejar os investimentos públicos. Ou seja, o presidente da República vence a eleição com uma agenda econômica apresentada ao país durante a campanha, mas para aplicá-la dependerá de uma realidade sobre a qual exerce limitada influência.
O “teto de gastos”, como a Emenda Constitucional (EC) 95 ficou conhecida, foi um retumbante fracasso e está sendo substituído pela lei complementar idealizada pelo ministro Fernando Haddad e alterada pela Câmara dos Deputados. A nova lei é muito menos restritiva do que o teto de gastos, mas o conceito se mantém o mesmo. O presidente da República não pode mais planejar soberanamente a economia do país.
- Em dezembro de 2020, começou a funcionar aquilo que passou a ser chamado de “orçamento secreto”. Enfraquecido, isolado, sem partido político e sem base de apoio orgânica, Jair Bolsonaro entregou os anéis para não perder os dedos. Com medo do impeachment (e não faltavam crimes de responsabilidade), Bolsonaro entregou a execução do orçamento para o Congresso Nacional. A partir desse momento, o Poder Legislativo ganhou outro estatuto no Brasil. Passou a não se contentar apenas em legislar. Quer ter a chave do cofre, quer executar orçamento. Nessa realidade, o presidente não passava de um agitador de plateia que nas sombras conspirava e tentava liderar um golpe de Estado. Bolsonaro não governava.
- Em 25/2/2021 foi aprovada a Lei Complementar 179, que estabelecia a autonomia do Banco Central. A partir de então, o presidente do Banco Central, responsável pela gestão da política monetária do país, passaria a ser escolhido pelo Senado para exercer um mandato de quatro anos que não se compatibiliza com o mandato do presidente da República. Ou seja, o presidente da República eleito não controla mais a política monetária, não interfere na taxa de juros, não tem instrumentos para facilitar o crédito e impulsionar a economia. A tal “autonomia” se dá apenas em relação ao controle da autoridade política escolhida pelas urnas, mas não em relação às “expectativas do mercado”, que também atendem a interesses políticos. Como diria Maria da Conceição Tavares: “Autonomia em relação a quem, meu amigo?”.
É muito mais difícil governar hoje. Praticamente impossível. Nessa conjuntura tão desfavorável, o que o governo fez em apenas cinco meses é quase um milagre.
No passado, “articulação política” significava distribuir cargos e ministérios para os parlamentares aliados, naquilo que Sérgio Abranches chamou de “presidencialismo de coalizão”.
Abranches formulou a categoria em artigo publicado em 1988, onde fazia uma dura crítica ao sistema político brasileiro. A “coalizão” seria necessária em virtude da “heterogeneidade estrutural da sociedade brasileira”, que no plano da macro política se manifestava na “disparidade de comportamento, desde as formas mais atrasadas de clientelismo até os padrões de comportamento ideologicamente estruturados”. O presidente tinha que fatiar o poder porque, devido à imaturidade ideológica do sistema político, não conseguiria apoio apenas com um programa sólido de governo.
Abranches via o “presidencialismo de coalizão” como manifestação da precarização da vida política nacional.
Hoje, o Congresso Nacional não se contenta mais com cargos e ministérios. Quer governar o país, e para isso está disposto a chantagear o presidente, a golpear projetos de governo referendados eleitoralmente. Não sei o que acha hoje o professor Sérgio Abranches, mas eu tenho saudades do presidencialismo de coalizão.
Portanto, colocar os problemas que o governo vem enfrentando na relação com o Congresso Nacional na conta da “articulação política” significa simplificar uma discussão que é muito complexa. Tampouco as dificuldades estão sendo impostas pela oposição bolsonarista, geralmente desarticulada, sem experiência institucional e mais barulhenta do que efetiva.
A raiz do problema está no desmonte da instituição Presidência da República iniciado no golpe parlamentar de 2016.
O conceito de Estado imposto pelo golpe venceu. A vitória eleitoral de Lula em 2022 ainda não conseguiu reverter isso. Conseguirá?