Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Se algum dia alguém tiver a boa ideia de escrever um glossário da crise democrática brasileira, a palavra “negacionismo” terá seu verbete. A definição dirá ser “negacionista” aquele que rejeita evidências concretas para elaborar narrativas sem correspondência na realidade. O verbete dirá também que o negacionismo se tornou retórica política para o populismo de extrema-direita de Jair Bolsonaro.
Seria possível enriquecer ainda mais o verbete, explorando outras práticas de negação da realidade que se manifestam na leitura da crise democrática feita por aqueles que desde o início se colocaram como opositores a Bolsonaro.
Esse seria o “outro negacionismo”. Ou, por que não (?), o “nosso negacionismo”.
Primeiro, afirmamos que Bolsonaro não venceria a eleição, por ser de partido pequeno, por não ter palanque espalhado pelo pais, por não ter tempo de propaganda na TV.
(Meu negacionismo acabou aqui. Foi atropelado pela realidade)
Depois, diziam que Bolsonaro era burro, incompetente, que não conseguiria governar. Disseram “Bolsonaro acabou” em diversas ocasiões, sempre que o presidente desafiou a racionalidade política usual.
“Bolsonaro acabou” em março de 2020, quando veio a público negar a gravidade da pandemia da covid-19.
“Bolsonaro acabou” em abril de 2020, quando demitiu Sérgio Moro, que era considerado o grande fiador de seu governo.
“Bolsonaro acabou” em junho de 2020, quando Fabrício Queiroz foi preso e o esquema de corrupção envolvendo o clã estava prestes a ser revelado.
“Bolsonaro acabou” em março de 2021, quando demitiu na mesma canetada os comandantes das três forças armadas.
“Bolsonaro acabou” entre abril e julho de 2021, quando a CPI da Covid revelou ao país toda a sorte de roubalheira e maracatuaias na aquisição de insumos médicos para o combate à pandemia.
“Bolsonaro acabou” em cada divulgação de pesquisa eleitoral que mostra o presidente sendo rejeitado pela maioria da população e derrotado por todos os outros candidatos na simulação do cenário eleitoral de 2022.
O que se viu a cada “Bolsonaro acabou” foi o presidente caminhando (ora a passos largos e ora a passos curtos) para destruir o país. A cada “Bolsonaro acabou”, vemos um passo no sentido de nossa própria destruição. Nós é que estamos acabando.
Por que a insistência em negar o perigo, em negar a realidade?
1°) Primeiro motivo, acredito, está no velho erro de subestimar a capacidade política de Jair Bolsonaro por conta de uma espécie de preconceito estético. Bolsonaro é homem grotesto, de hábitos rústicos e pouco refinados. É como se os brutos fossem necessariamente burros. É como se a inteligência política precisasse, obrigatoriamente, ser acompanhada de boa estética e elegância.
Bolsonaro foi parlamentar por quase 30 anos. Ao que tudo indica, terminará seu mandando presidencial e chegará competitivo às eleições de 2022, mesmo com a condução genocida da pandemia, com índices assustadores de desemprego, gasolina a mais de 6 reais, inflação de alimentos descontrolada.
Bolsonaro bloqueou a possibilidade de impeachment e conseguiu manter fidelizada, e em constante agitação, algo próximo a 20% da sociedade. Essas pessoas estão disciplinadas ideologicamente e dispostas a defender o governo, inclusive pela violência. Dizer que Bolsonaro é burro significa negar o real perigo que ele, há mais de três anos, representa para a democracia brasileira. Já éramos pra ter superado essa fase.
2°) O segundo motivo passa pela incompreensão da lógica do bolsonarismo. O governo de Jair Bolsonaro não deveria ser tratado como governo normal, cuja finalidade é colocar em prática sua agenda política, seguindo os ritos da democracia liberal-representativa. Bolsonaro, desde o primeiro dia de mandato, confronta todos os ritos da democracia liberal, desde o decoro esperado do comportamento de um chefe de Estado até o respeito aos outros poderes. Ele faz isso numa situação de descrença coletiva com a democracia liberal.
Desde o início, o objetivo era implodir o sistema político fundado pela Constituição de 1988. É em função desse objetivo que o governo de Bolsonaro deve ser avaliado. Ele está conseguindo fazer exatamente o que se propôs. Nesse sentido, é extremamente competente.
A útima dos negacionistas de oposição é dizer que o desfile de tanques militares marcado para o dia da votação da PEC do voto impresso na Câmara dos Deputados seria sinal da “fraqueza de Jair Bolsonaro”.
Bolsonaro tem apoio declarado de parte considerável do alto comando das Forças Armadas, tem adesão ideológica de parte considerável das PMs estaduais, de frações da Polícia Federal. Coloca veículos de guerra nas ruas da Brasília para intimidar o Congresso Nacional. A conclusão? Faz isso porque está fraco e desesperado.
O que estamos vendo não é um homem fraco e desesperado. Estamos diante de um líder obstinado, armado e carismático.
Bolsonaro não cairá por si só, vitimado pelos seus próprios erros. Alguém precisa tirá-lo de lá. A sensação é que ninguém tem a minima ideia de como fazê-lo.
Negar a força de Jair Bolsonaro é tão perigoso como negar a gravidade da pandemia da covi-19, talvez seja até mais.