O jornalismo e os padrões machistas

Por Joana Brasileiro | Jornalistas Livres

Redação de um grande jornal (São Paulo-Brasil) no final do século 20…

Era um ambiente machista e racista. A minoria de mulheres se esquivava constantemente de todo tipo de assédio, pressões e opressões oportunistas.

Eu entrara naquela ambiente, com as “fraldas ainda molhadas”, recém-saída do colegial, após fazer um cursos técnico. Como sempre me sentira um patinho feio, nos primeiros dias, quando eu entrava na redação, circulando pelo corredor central que ao lado continha as editorias, me sentia olhada de cima abaixo, por todas e todos…

Se isso era profundamente intimidador por um lado, por outro fazia com que eu experimentasse uma sensação de sucesso, de admiração. Sentia-me atraente.

A editoria de arte era um lugar à parte —acho que em todo lugar é. Onde todos os loucos mais maravilhosos emprestam sua arte a um compressor industrial de letrinhas. Acho que, neste mesmo patamar, só mesmo a editoria de fotografia….

O fato é que existia este clima sexual no ar, e os valores eram confusos, pseudo-modernos, convivendo com padrões dos mais arcaicos. Um “pitelzinho” como eu, boba de tudo, era uma presa fácil. Só que não. Em uma semana, arrumei um namorado, diagramador como eu, para evitar o fenômeno “mulher solteira é sempre desfrutável”.

Para quê! O rapaz foi perseguido por um dos meus chefes, que não aceitava que a “turma dele” não tivesse desfrutado a “carne fresca”.

Eu e ele aguentamos por um ano e meio, mais ou menos, pressões do tipo mudar a escala de trabalho, e todo tipo de sacanagens, até que ele pediu demissão.

O detalhe é que a editora de arte era uma mulher, mas tão submetida e oprimida ao esquema quando tantas outras. Dois meses antes de eu este namorado terminarmos, numa festa, meio bêbado, esse meu chefe resolveu “aceitar” nosso resistente relacionamento, e deu sua “bênção”. São obsessões possíveis dentro de um ambiente insalubre, pautado por padrões machistas, quando até podiámos dizer também escravagistas, em que o chefe acha que vai determinar com que fica a funcionária gostosa.

Era bem difícil não se atrapalhar com tudo aquilo, porque o normal era um colega chegar perto de você e fazer qualquer tipo de comentário baixo, mesmo que aparentemente “elogioso”, sobre a sua roupa, ou mesmo apenas emitir um “chiado” característico, e soltar um “Tá gostosa, hein?”, dependendo do nível de intimidade, que muitas vezes não precisava ser muito, não.

E a gente nem nomeava isso como assédio, porque meio que fazia parte; a gente não ia mudar isso. Então, a gente fazia que gostava, e às vezes até gostava mesmo. Mas isso não importa, porque o fato é que, na cultura machista, dentro de um ambiente de trabalho, as lógicas estão impostas de maneira tão atávica, que você pode ser violentada, simbolicamente ou não, e se sentir a eterna culpada.

Minha mãe me contou que numa outra redação, de uma grande revista de circulação nacional, na década de 80, era comum que uma mulher solteira fosse chamada de “presunto”. Era normal…

Fora que éramos pessoas confinadas, num mínimo de 8 horas por dia, mas com um volume médio de 5 horas extras a mais, pelo menos uma vez por semana. Resumindo, trabalhávamos muito, e este espaço de trabalho ocupava muito do espaço afetivo e da vida pessoal. Era natural que a vida pessoal e sexual se confundisse com as das pessoas do convívio da redação.

Os anos 90 trouxeram as grandes revoluções tecnológicas, a entrada das paginadoras em larga escala, dos macintosh, e a cada semestre tínhamos que nos adaptar a modos e operações diferentes. Neste cenário, a minha função, diagramador, era uma das mais oprimidas —o prognóstico é que nem existiria mais.

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Durante um período de aproximadamente um ano, fiquei na função de paste-up eletrônico. Montávamos o jornal, parte por parte de cada matéria (títulos, texto, fotos, legendas), de cada página, e era um trabalho bem mecânico e estressante. Nessa época, eu ficava, junto com um colega meu, no corredor das paginadoras. Ele era o rei do assédio. Aquele corredor na entrada da redação, por onde passavam todas as pessoas, com a companhia deste colega, mais parecia a porta de uma obra. E ele era mestre, brincava com todas as mulheres que passassem, e acho que para algumas era até bem divertido.

Hoje me dou conta, sob a perspectiva de uma mudança de paradigma, como era escroto, e uso esta palavra para definir, porque acho-a sonoramente muito potente e é “coincidentemente” uma parte pendente do órgão masculino (;D). Mas, a palavra melhor seria, “inconveniente”, pois estabelecia uma relação dúbia e opressora que relativizava assédio e sedução, que é o ponto aonde eu quero chegar.

Diante destas relações machistas, a premissa é que o homem PODE assediar. E a mulher que se vire. Como fazíamos? Brincávamos com isso, aceitando com um certo nível de sedução e resposta positiva, como se pudéssemos contornar sem transformar tudo numa briga. Porque, senão, íamos brigar 24 horas por dia, e com certeza não teríamos a razão. Afinal, a premissa é que a mulher provoca, seja porque aceita uma investida, seja porque não aceita. Era mais fácil “aceitar” e deixar a coisa rolar até um certo ponto… sem dar muita bola. Passávamos batido mesmo, ou nos divertíamos com isso. O que fazer?

Neste cenário, lembro de um editor, que enquanto eu diagramava ficava com a mão na minha perna. Era uma cena absurda na verdade, porque ele não iria além disso, mas afinal eu estava de minissaia, ou me insinuando, e para a cartilha de homem, que ele tinha que seguir, “uma gostosa de minissaia pede uma mão em sua perna”.

A atitude durou um tempo. Depois de muito relutar, denunciei o canalha à minha chefe, que relativizou, seguindo a atitude-padrão sobre a qual precisamos refletir muito ainda. E eu fui obrigada a parar de diagramar o caderno de jovens, que na época era o meu maior prazer. Hoje, ele é assessor de um político de esquerda, que admiro bastante.

Com o tempo, a mulherada já estava mais à frente das editorias, e dos cargos de chefia, e esse empoderamento foi modificando bem o ritmo das relações. Mesmo que pairasse sobre as mulheres “desfrutáveis” —normalmente as não-casadas— a premissa de que tinham “dado” (feito sexo) para alguém, possivelmente para o diretor de redação. Sim, porque, na maioria das vezes, a hipótese de que a competência feminina vem antes da vagina, é implausível no ambiente machista, e principalmente as outras mulheres “desfrutáveis” ou não, eram as primeiras a defender tal tese.

Mas os “anus” 90 foram também cheio de libertações, e o fator gay saindo com mais “força do armário”, despolarizou um pouco relações, mas a estrutura dialética se manteve a mesma. Porque em contrapartida veio a onda do politicamente correto, que pretendia restabelecer estas regras sociais e culturais, desconsiderando ou, a meu ver, jogando para baixo do tapete, questões nevrálgicas, introjetadas nas relações.

Porque de certa maneira, independentemente de como fomos criados —e a tese da criação é uma outra faceta da cultura machista, já que a culpa recai novamente sobre a mulher-mãe—, introjetamos que as relações se dão pelo viés do discursso da “sacanagem”, e aceitamos isso como base para nos entendermos diante dos desafios. Diante deste discurso, a mulher será sempre um alvo fácil, culpada, santa, puta ou a outra.

Como não há uma premissa de igualdade, podemos então cair no “revanchismo”, e aí voltamos a ter culpa. Como quando se diz que há um racismo do negro contra o branco, e aí queremos apagar 500 anos de opressão, que não são apenas uma questão de comportamento da sociedade, mas também é uma premissa da política de Estado, que permanece. Não podemos enfrentar essas questões fingindo que elsa não existiram.

No ambiente da mesma redação, tendo incorporado este padrão, reconheço que me tornei, em alguns momentos, portadora do mesmo nível de machismo que quero combater e denunciar. Para aquele mesmo amigo, do corredor das paginadoras, que todo dia sussurrava no meu ouvido, um dia eu cheguei e falei: “Então tá. Vamos transar? Quando? Eu quero!” Aí, ele amarelou e não foi ao encontro. Eu podia ter ficado na satisfação da vitória moral, mas, não contente, denunciei sua “fraqueza” masculina diante dos colegas. Um dia, num bar, humilhei: “Ah! Cão que ladra, não morde.”

As “carnes novas” que entravam na redação (podiam ser homens ou mulheres) e a premissa do assédio na justificativa da conquista permaneciam, mas, agora, muitos homens passavam a ser assediados, e na lógica machista, admirados e invejados, por todos os outros, sem que perdessem sua credibilidade. O mesmo não ocorre para mulher, que “se der ao desfrute”, ainda no século 20, pode ficar “mal falada”.

Num outro momento, já no final da década, eu estava num cargo de chefia, e quando aplicava um teste para contratação de alguns designers, aproveitei o tema do caderno especial sobre a história da alimentação, que começávamos a elaborar, para dizer que todos os candidatos deveriam se submeter ao teste da farinha… Para quem não conhece, o tal teste da farinha baseava-se na música “Doze anos”, cantada por Chico Buarque e Moreira da Silva, que contava que os jovens meninos sentavam na farinha para ver se deixavam marcas das suas pregas. Pesado… isso. Hoje penso o quanto.

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Mas era apenas uma brincadeira, justificativa que é a outra faceta do discurso que envolve todo tipo de opressão, preconceito e injúria. Hoje sei que posso ser bem violenta com este nível de brincadeira, e posso atravessar com facilidade o limite do respeito e da compreensão do outro. Acho que é porque me acostumei a responder assim, a brincar assim, a estar neste nível de diálogo, porque isso “era” o normal, não apenas nas redações.

Se faço esta autocrítica e reflexão, é porque percebo o quanto temos que lutar, e gritar e chacoalhar esta sociedade para que cada simples signo de opressão, possa ser combatido, e por que o volume dos nossos gritos tem que ser ainda mais alto. É que estamos diante da possibilidade de um retrocesso cultural e político, que pode nos levar para a idade média. E as relativizações, distorções, manipulações midiáticas, e o ressurgimento dos monstros e valores da ultra-direita têm tudo a ver com esse retrocesso.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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