O homem que vivia de rolo

Por Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

No último dia 4, a Polícia Federal indiciou o ex-presidente Jair Bolsonaro e mais 11 pessoas por peculato, lavagem de dinheiro e associação criminosa no inquérito das joias. Todo brasileiro minimamente informado sabe que Jair Bolsonaro e alguns de seus subordinados estão envolvidos em um esquema de venda ilegal de bens públicos. Nem mesmo os acusados negam que existia o tal esquema. A linha de defesa consiste em dizer que não se trata de crime, pois não haveria legislação específica para regular a matéria.

A defesa é a função dos advogados. A Polícia Federal investigou e apresentou os indícios preliminares. Agora, o Ministério Público decidirá se apresenta denúncia formal ou não. Não é minha intenção discutir os termos técnicos do processo, pois, com certeza, há quem o faça melhor. Interessa-me, sobretudo, analisar a dimensão cultural desse tipo de modalidade de corrupção, o que nos ajuda a compreender a pouca capacidade que o escândalo tem de comprometer a imagem de Jair Bolsonaro junto a seus apoiadores convictos.

Para esclarecer meu argumento, peço licença ao leitor e a leitora para contar um causo pessoal.

Fui criado na periferia do Rio de Janeiro, em um bairro chamado Anchieta. Subúrbio profundo, quase Baixada Fluminense. Essa região é o berço do bolsonarismo como fenômeno cultural.

Olho para Jair Bolsonaro gargalhando depois de uma piada homofóbica; olho para Flávio, de sunga, em meio a um churrasco, simulando o irmão mais novo utilizar o prestígio do pai para conseguir sexo; olho para Eduardo mostrando o traseiro a Javier Milei para explicar o que é “incomível” e sei exatamente o que vejo.

Vejo um tio, um primo, um antigo vizinho. Vejo o professor da escolinha de futebol. Homens comuns, a maioria pessoas boas, trabalhadoras.

Entendo perfeitamente por que o bolsonarismo se tornou força política tão poderosa. É que antes de ser fenômeno político, é fenômeno cultural que traduz um certo jeito de existir. Entendo perfeitamente de onde vem o carisma de Jair Bolsonaro, entendo perfeitamente por que tanta gente se identificou com ele.

Homens comuns, trabalhadores, que não raro atravessam o limite da legalidade em pequenos esquemas cotidianos de ilicitude.

Em entrevista à revista Veja, Fabrício Queiroz, operador dos esqueminhas da família Bolsonaro, se definiu como alguém que “vive de rolo”.

“Viver de rolo”.

Logo que ouvi essa expressão me veio à memória, de modo instantâneo, uma conversa que tive com a minha mãe, talvez em algum momento dos anos 1990. A velha falava de seu irmão mais novo, meu tio, que não tinha “trabalho fixo”, ou seja, não tinha fonte conhecida de renda. Ainda assim, o sujeito ora estava com um carro, ora com uma moto, sempre com o melhor tênis, perfumado.

“Como ele consegue?”, perguntei. Minha mãe respondeu: “Ele vive de rolo”.

O que é “rolo”?

Rolo tem a ver com desenrolo, conversa, negociação. Por exemplo: tenho uma moto velha que precisa consertar a embreagem. Você tem um playstaion 3, com somente um controle funcionando. Fazemos um rolo. Você me dá o Playstation e mais 300 reais e eu te dou a moto. Ambos saímos com a sensação de que ganhamos, de que nos demos bem às custas de outro. É o mundo em que todos querem ser malandros.

“Rolo”, portanto, são esqueminhas de negociação cotidiana que não raro descambam para a ilegalidade, para o crime. É errado, todos sabem, e todos fazem. “Rolo” é a corrupção do homem comum.

“Jair Bolsonaro e seus cúmplices fizeram rolo com patrimônios da instituição Presidência da República. Impossível negar que, de alguma forma, o bolsonarismo representou o povo no poder.

Foi, de fato, o governo dos homens comuns e, de alguma forma, foi também a radicalização grotesca e perversa da democracia.

Se fosse presidente da República, meu tio faria rolo até com os talheres do Palácio do Planalto. Não me surpreende nada que ele goste tanto de Jair Bolsonaro. Não tem rolo com joias que mudará isso.

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