O feminismo da Globo é o feminismo que nos aprisiona

Ilustração: Rabiscos da Carolzinha - Itzá

Foi ao ar ontem a estréia do programa “Amor & Sexo” 2017 com o tema “Feminismo”. Feminismo entre aspas porque o feminismo vendido pela Globo não é verdadeiramente uma luta pela autonomia das mulheres sobre seus corpos e vida.

As citações do programa não terão as pessoas identificadas porque a reflexão é em cima da situação e não da pessoa. Não irei pessoalizar os discursos.

É importante pontuar que a liberdade sexual das mulheres serve aos homens. Liberdade não é sobre transar na primeira noite e sim sobre não querer transar e não transar. A mulher “livre sexualmente e sem tabus” é vista como vantagem pelo imaginário masculino e machista. A partir do momento que a mulher se nega ao sexo, ela “sofre as consequências” disso. Pros homens pouco importa se você se sente livre ou não, o importante é que ele faça sexo com você.

Dois minutos e quinze segundos foram dedicados a uma fala sobre regulamentação da prostituição. Ainda que não explorado, tratar deste assunto em rede nacional quando a TV aberta está presente na casa de 98% da população brasileira, é problemático. O tema foi pincelado e mostrou apenas um lado, assim fazendo a regulamentação parecer legítima e urgente. A regulamentação da prostituição não regulamenta a prática e sim a exploração realizada por terceiros, os cafetões, garantindo que eles fiquem com até 50% dos lucros da mulher em situação de prostituição. Quando se coloca uma posição favorável a exploração do corpo feminino em rede nacional, o feminismo sangra junto com todas as vidas perdidas por causa dessa violência.

Num determinado momento do programa, uma das convidadas fala sobre uma marcha “que todas saíram vestidas de vadias” e é importante perguntar o que é “se vestir de vadia?”. Ressignificar um termo pejorativo não retira o peso dele. Mulheres continuam sendo estupradas, machucadas e mortas enquanto são chamadas de vadias. A nudez do corpo feminino serve aos homens numa sociedade patriarcal machista.

A palavra “empoderamento” é usada com frequencia pelas convidadas para demonstrar a segurança que elas sentem quando não fazem o esperado pela sociedade – ou a falsa ilusão de que não fazem, como por exemplo, a falácia da liberdade sexual e da nudez sem tabus. Empoderamento vem de tomar poder, mas uma mulher não toma poder algum quando se vive numa sociedade estruturada pelo machismo e pela misoginia.

“Ajudem o machista senão vai sobrar pra vocês” – não é possível que essa frase tenha sido dito em tom de brincadeira num programa sobre feminismo. Isso nada mais é do que um exemplo da culpabilização da vítima. Mulher nenhuma é obrigada a ensinar o feminismo para quem as violenta.

Foi possível observar diversos “descuidos” do programa com a questão feminista que ficaram evidentes no momento em que foi dito que os homens precisavam ter o CARINHO de votar em mulheres – não é uma questão de carinho, as mulheres estão na luta por políticas públicas que as mantenham vivas e não em busca de carinho -, e quando foi citado que a “Clitonia”, personagem fictícia do programa, veio do espaço.

O programa tratou de forma caricata o feminismo e reforçou, disfarçadamente, mas não por coincidência, todas as formas de exploração da mulher.

A Globo não se interessa por feminismo, por representatividade e muito menos por assuntos polêmicos. O feminismo da Globo é o feminismo que nos aprisiona. Ontem o programa “Amor & Sexo” bateu 15,9 de audiência – isto é, uma audiência maior que 15 dos 24 programas diários da emissora. Os lucros movem a Globo. Se houvesse realmente uma preocupação da Globo sobre o assunto, o pedófilo do BBB 16 teria sido expulso, ou então, os atuais BBBs racistas já teriam sido retirados da casa.

A inclusão dos temas só interessa por causa do lucro. O programa que usou a representatividade como estratégia e sequer tocou na palavra lésbica, não está interessado na vida das mulheres – num geral -, nem das mulheres negras, nem das mulheres lésbicas. Está interessado apenas no feminismo que o capitalismo tratou de se apropriar.

Infelizmente a esquerda feminista vem pecando quando não faz um debate de forma ampla, atingindo a todas as mulheres e acaba sendo pautada pela Globo. A emissora com um currículo machista, misógino, racista e lesbofóbico cai na boca e na discussão de todo o movimento feminista, que o abraça prontamente. É preciso que nós pautemos as discussões e não fiquemos a mercê uma rede de televisão que sempre tratou as mulheres como objeto. A Globo se traveste de feminista e empurra pra debaixo do tapete os anos de exibição do corpo de uma mulher negra à venda, como carne. É impossível não se lembrar do programa “Cassino do Chacrinha” que, já nos anos 80, objetificava do corpo da mulher da forma mais machista possível. E não podemos deixar de mencionar que a Globo também fez parte da derrubada de uma presidenta legitimamente eleita.

Agora ela faz uma teatralização em cima de um palco e usa nomes fortes dos movimentos feminista e negro para passar uma imagem de que é a favor do feminismo e da libertação das mulheres. Mas na verdade, o “feminismo” da Globo é o feminismo que nos mantém presas.

 

Os Jornalistas Livres entendem que o feminismo contemporâneo contém múltiplas vozes. Nossas redes abrem-se a tantas inteligências que queiram compartilhar seus saberes e experiências para o fortalecimento das mulheres. É só mandar seu texto para: [email protected]

COMENTÁRIOS

13 respostas

  1. É isso.
    Colonizadores dão novas formas aos seus espelhinhos. Mas nunca deixam de usá-los.
    Obrigada por isso.

  2. Concordo com tudo o que está no texto! Mas acho que faltou falar sobre os pontos positivos do programa. Ele abordou feminismo negro, estatísticas de violência contra a mulher, não deixou os homens roubarem protagonismo das mulheres… Isso tudo é importante. Além disso, creio que ajudou a “descomplicar” o feminismo para pessoas leigas, especialmente mulheres que não estão familiarizadas com os debates sobre capitalismo, que não conhecem todas as vertentes feministas, que não têm acesso à informação. Eu sei que é difícil admitir isso, mas infelizmente o pensamento crítico a respeito do momento histórico do feminismo deixa muito a desejar na população em geral. A dona de casa, a trabalhadora assalariada… essas mulheres não têm a mesma bagagem de conhecimento sobre o tema que as mulheres (me incluo nesse grupo) que estão expondo uma opinião mais crítica sobre o programa. No mais, repito que concordo com o texto e enfatizo que foi um absurdo tratarem prostituição de maneira tão rasa (e conveniente para a manutenção do status quo). Uma amiga disse que não é a proposta do programa promover debates, o foco ali é entretenimento. Concordo. Mas é necessário fazer uma reflexão maior sobre a abordagem feita no programa – por que esse programa? Por que dessa forma? Por que não questionaram coisas realmente desafiadoras da ordem atual? As pessoas que questionam isso não estavam ali. E provavelmente nunca estarão. A gente precisa urgentemente tornar mais acessível esse conhecimento que tanta gente enche a boca pra chamar de elitista.

  3. Oi Martha!

    Gostei do seu texto, mas tenho um ponto de vista diferente.
    Eu concordo com muito do que você expôs, senão tudo.
    O que vejo além é a possibilidade de se tratar do feminismo em rede nacional, canal aberto e em horário nobre. É ver que esse tema entrou na casa de muita gente que não sabia nem o que é feminismo.
    Foi o ideal ou o mais adequado? Pode ser que não. Só que foi. Chegou pra muita gente que não tem essa informação porque não pode ou não quer.
    Deu importância, mesmo que falhando como você expôs, ao movimento.
    Eu considero importante.
    Tem que mudar muito, mas já é um começo.

    Beijos

  4. Ratifico tudo! Quando se acha que a saída para o problema da prostituição é a sua legalização. Você esta confirmando que a mulher é tão incapaz que precisa vender seu corpo para sobreviver. O Brasil sempre mercantilizou e cosificou o corpo da mulher sem precisar usar a desculpa de estar em guerra civil.

  5. Marta, mt obrigada por partilhar sua opinião! Sinto que não estou só na minha percepção. Publiquei o seguinte post pela manhã: “N tenho TV, e não assisti Amor e Sexo ontem. Mas li mts posts falando sobre; da importância da representatividade das mulheres, etc. e a presença de Djamila Ribeiro, Karol Conka, a diva Elza Soares, entre outras personalidades.
    E daí que pensei: quando a Globo abraça a pauta, há algo errado. Falar de representatividade e ignorar que recentemente uma presidenta foi retirada do seu poder legitimo; não mencionar Maria da Penha, que deu a origem a lei, num país que insiste no feminicídio e violência doméstica; entre outras coisas, é apresentar o feminismo como um “tema leve”, mais um entretenimento.
    Tal como querem, o discurso está sendo adequado ao sistema, ao consumo e prontinho pra ser assimilado, enquadrado e tb sujeito; enqto as causas fundamentais (das mulheres campesinas e indígenas por exemplo, ninguém lembra, né?) são completamente ignoradas.” Resultado: críticas e mais críticas. No entanto, penso que permaneço no lado atento da força ☺

  6. algumas das observações citadas haviam sido discutidas num grupo com amigas hoje. não tenho tv em casa e pouco vi do programa, no entanto o conteúdo do mesmo remete ao seu título [amor e sexo] discutir o feminismo nessa esfera é complicado, pois sabemos que é um leque de “problemas” a qual, nós mulhres, passamos diariamente. Para o programa em questão, achei os tópicos bem válidos, embora não tenha contemplado a classe lgbt; é um programa sobre sexo, então falar de prostituição, sexualização da mulher negra e liberdade do corpo casam bem com a proposta do programa > não daria pra abranger todas as causas feministas num curto espaço de tempo em um programa de tema específico. Não estou defendendo a emissora, que evidentemente visa lucro e manipulação, nem estou satisfeita com o resultado pois notei o despreparo de algumas das celebridades [no nível aceitável, talvez por falta de informação, afinal estamos todos no processo de desconstrução, não é mesmo?] mas para um nível de entretenimento “barato” ao menos uma mensagem razoável foi emitida.

  7. “A Globo se traveste de feminista e empurra pra debaixo do tapete os anos de exibição do corpo de uma mulher negra à venda, como carne”. Inegável, isso é um fato. Mas como vimos esse ano, eles mudaram totalmente a chamada do carnaval na TV. Não seria isso uma mudança de iniciativa? Não podemos ver isso como uma tentativa de reparar o que estava errado? Pior seria se mantivessem a chamada antiga.

    “É impossível não se lembrar do programa “Cassino do Chacrinha” que, já nos anos 80, objetificava do corpo da mulher da forma mais machista possível” Mais um fato, mas tenho uma “explicação” pra isso: o movimento feminista na época não tinha atingido tanta gente como hoje. Hoje as atrocidades são percebidas e denunciadas. Não estou dizendo que naquela época não havia quem notasse isso, mas o movimento feminista não era tão contundente, e a TV continuava expondo as mulheres. Hoje eles sabem. Hoje, na minha opinião, estão tomando consciência. Estão iniciando o reparo do que estava errado. Talvez ainda não do modo que vocês queiram ver. Que haja mais debates e divulgação de opiniões pra que a TV tenha mais conhecimento da maneira como devem tratar o assunto, mas eles começaram a tratar do assunto.

  8. Eu acho que é aos poucos que as coisas mudam, em muitas casas o tema feminismo nunca sequer foi debatido entre as pessoas. Aquilo é um programa de TV e não uma aula, não dá pra explicar feminismo assim, de uma vez, é completamente ilusório achar que isso aconteça, assim, de uma hora pra outra.
    Eu gostei do programa, já havia pensado sobre muita coisa ali, mas e quem nunca teve a oportunidade? Pela primeira vez eu vi, dentro da minha casa, as pessoas assistindo, escutando e dando ATENÇÃO. Não é ali que eles vão aprender tudo, mas já é uma começo. Problematizar tanto assim não é válido ao meu ver, é claro que por trás de tudo aquilo que pudemos assistir existe algo muito maior, mas vamos tentar olhar para o lado bom da coisa para que caminhemos para programas em horário nobre que realmente sejam efetivos e tragam discussões mais profundas.

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